Jornal Estado de Minas

Escritor fantasma conquista espaço nas livrarias brasileiras


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O cantor da moda, a atriz sensação, o youtuber com mais seguidores, o escritor consagrado, o presidente da grande empresa ou até mesmo um mero anônimo. Todo muito tem uma história de vida pra contar. Mas nem sempre é a própria pessoa que relata sua trajetória. Em boa parte dos casos, um profissional assume a função: o ghost writer. Pago para escrever textos oficialmente assinados pelos outros, esse escritor não recebe créditos de autoria, conforme estipula um contrato ou um acordo de cessão de direitos autorais.
 
“O grande desafio do ofício é você se colocar no lugar daquela pessoa e entendê-la. O livro é dela, com as palavras dela, a visão dela, o jeito dela. Após o depoimento do biografado e da pesquisa minuciosa, a gente vai montando um grande quebra-cabeças até chegar ao produto final”, explica a carioca Tânia Carvalho, escritora, jornalista e “ghost writer por paixão, opção e profissão”, como ela define.
 
A partir da Coleção Aplauso (Imprensa Oficial de São Paulo), que lançou biografias de cineastas, atores e dramaturgos, entre outros artistas, Tânia passou a despertar o interesse de editoras como escritora fantasma. Ela fez 18 livros para o projeto, dedicados a Tonia Carrero, Aracy Balabanian, Paulo José e Ney Latorraca, por exemplo.
 
“Justamente por conta da Aplauso, aumentou a demanda por biografias e autobiografias.
Nunca pensei em ser ghost writer, é um mercado ainda muito desconhecido. Mas acabei gostando e hoje faço de dois a três projetos nessa linha por ano”, revela.
 
Tânia não liga de seu nome não estar na capa do livro. O que importa, diz, é ter o trabalho reconhecido, mesmo anonimamente. “Seja por meio de uma crítica, de um elogio. Mesmo que não saibam que foi você quem fez. O livro é do outro. A gente abaixa o nosso ego, coloca ele a zero para que o biografado possa se reconhecer na história.
Se isso não ocorrer, você não fez bem feito. E, claro, tem de escrever bem, saber contar aquela história da melhor maneira.”
 
A escritora não revela para quem atuou como ghost writer, diz apenas que trabalhou para famosos e anônimos dos mais variados segmentos – empresários, advogados, cantores, presidente de escola de samba. “Descobri que todo mundo tem uma boa história pra contar. Não faço distinção entre as pessoas nem altero o valor por ser milionário. É trabalho bem remunerado, mas exige muito tempo e dedicação. Gostei tanto que até criei um curso de ghost writers. Sem falsa modéstia, acho que abri mercado para muita gente, pois me considero uma das pioneiras no país”, destaca.
 
Paralelamente a esse trabalho, a carioca mantém a carreira de escritora. Um de seus livros é o recém-lançado 100 dias em Lisboa, volume de crônicas que não deixa de ser uma autobiografia, segundo Tânia.
 
Mesmo apostando que o mercado é promissor, ela diz que há certo preconceito em relação ao escritor fantasma no Brasil, diferentemente do que ocorre nos Estados Unidos e Inglaterra, onde o profissional costuma ser valorizado.
“Há discriminação no próprio meio. Eu me assumo como ghost writer, não vejo o menor problema nisso. É um trabalho pouco compreendido, daí o prejulgamento”, opina.


GUGA
O paulista Luis Colombini é outro ghost writer assumido, além de escritor, editor e jornalista. A primeira incursão dele nesse nicho foi a autobiografia do empresário Abílio Diniz, que acabou não saindo. Logo depois, surgiram projetos como o livro do tenista Gustavo Kuerten, o Guga. Esse trabalho teve boa repercussão e, algum tempo depois, Colombini foi convidado a contar uma história que, por incrível que pareça, ninguém havia revelado: vida de Mauricio de Sousa. A autobiografia surgiu quando o cartunista tinha 80 anos.
 
“A primeira coisa é saber ouvir. Dependendo, você tem que conferir determinadas informações com parentes, amigos. Mas acontece de o próprio biografado sugerir fontes para a gente entrevistar. É difícil escrever dos outros, para os outros, e ainda falando em primeira pessoa.
Deve-se tomar cuidado com o excesso de adjetivos laudatórios. A ideia é conversar com o leitor”, ensina.
 
Nas publicações de Guga e Mauricio, o nome do ghost writer foi creditado como colaborador ou “em depoimento a”. Pela regra, diz Colombini, ele não deve aparecer, mas isso pode mudar, dependendo da relação do autor com o biografado. “A gente vai vendo se a pessoa está gostando e pergunta. Nunca me disseram não”, garante.
 
Assim como Tânia Carvalho, Colombini se diz aberto a qualquer observação do biografado. O segredo é a cumplicidade. “É uma parceria, mas o livro é dele, por isso acato o que pedem. Minha função é fazer o trabalho da melhor maneira possível para despertar interesse do maior número de leitores”, enfatiza.


ESCRITÓRIO
Há 20 anos o Escritório de Histórias, em Belo Horizonte, atua na área da preservação da memória de pessoas, lugares e instituições, transformando trajetórias em livros. O espaço, que fica localizado na sugestiva Rua Monteiro Lobato, no Bairro Ouro Preto, é comandado pelo escritor Osias Ribeiro Neves, um ghost writer.
 
“Muita gente quer contar a história da própria família, dele mesmo. Virou uma coisa comum.
Mas o processo é igual parto. Dura nove meses, é lento, pois você tem de conferir dados, a pessoa faz ponderações. Tudo para ficar da forma que o cliente quer”, diz Osias, que produziu cerca de 100 publicações do gênero.
 
Sem entrar em detalhes com relação a valores, ele afirma que o custo é mais alto do que o de publicações que não contam com ghost writer. “Dependendo do livro, a gente tem de fazer várias viagens, entrevistar muita gente. É difícil cravar um valor, quem regula é o mercado”, diz. Entre seus trabalhos, destaca livros sobre a cidade de Ponte Nova e o Tip Tip, bar octogenário de BH.
 
Há casos curiosos na carreira desse escritor fantasma. “Uma pessoa pediu para contar a história dela. O livro ficou pronto, ele solicitou só uma cópia e a colocou no cofre. Disse para deletar todos os arquivos, não queria deixar rastro. Era uma trajetória de vida comum, não havia nada que justificasse tanto segredo”, revela Osias.
 
Agora ele se prepara para lançar um livro inusitado: a autobiografia de Chicó, seu cãozinho de estimação. “Até fiz questão de colocar que ela foi autorizada (risos). Todo mundo tem alguma história. Por que o meu cachorro não merece mostrar a dele?”, brinca.

MERCADO
PROMISSOR
Em São Paulo, a Lab Pub oferece curso de ghost writer, que está na terceira turma. As aulas estão a cargo da jornalista, escritora e editora Nanete Neves. Cássia Carrenho, uma das criadoras da Lab, diz que o ofício tem tudo para se expandir no país, pois o brasileiro tem grande interesse por não ficção. “As biografias entram aí. Não só de famosos e artistas, mas de empreendedores de sucesso. Gente que saiu do nada e venceu na vida. Todo mundo gosta de histórias de superação”, comenta. Autores celebrados, como Autran Dourado e Clarice Lispector, foram ghost writers. “Muitos escritores de renome fazem isso na atualidade. Alguns se assumem como tal, outros não. O mercado de biografias e autobiografias é constante, tem sempre gente consumindo. Sempre haverá espaço para quem se dedicar a esse filão”, acredita Cássia.
 
 
 
 "O livro é do outro. A gente abaixa o nosso ego, coloca ele a zero para que o biografado possa se reconhecer na história"

Tânia Carvalho,
ghost writer 
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