(none) || (none)
UAI
Publicidade

Estado de Minas LITERATURA

Autora lança história sobre mulher rica que se vicia em medicamentos

Em 'Meu ano de descanso e relaxamento', a escritora Ottessa Moshfegh descreve o percurso de uma mulher rica que se entrega ao isolamento e ao uso abusivo de drogas em Nova York, antes do 11 de Setembro e do fenômeno das redes sociais


postado em 18/08/2019 04:00 / atualizado em 18/08/2019 11:59

(foto: DANIEL LEAL-OLIVAS/AFP )
(foto: DANIEL LEAL-OLIVAS/AFP )
 

"Acho que todo mundo sabe que mulheres podem ser tão cruéis quanto os homens. Então não acho que esteja desbravando novos caminhos aqui. Mas talvez o que pode ser novo seja levar a sério a jornada espiritual e emocional de uma pessoa através da autodestruição. E frequentemente atribuímos esse tipo de sofrimento a homens"

. Ottessa Moshfegh, escritora norte-americana

 
Nada na história de Ottessa Moshfegh é convencional. Seu pai é um violinista iraniano e judeu que tocou na Europa e Ásia antes de voltar ao Irã e ser convidado a se retirar pelo novo regime islâmico. Sua mãe, croata, também estudou violino e se mudou com o marido para os EUA, na região de Boston, onde Ottessa e seus irmãos nasceram e foram criados.

Desde a sua formatura na faculdade Barnard, em 2002, Ottessa está sempre em movimento: uma de suas primeiras paradas foi Wuhan, China (onde trabalhou num bar punk), depois Nova York (onde iniciou sua aproximação com o mercado editorial), depois a universidade Brown, em Rhode Island (onde fez mestrado de escrita criativa e escreveu sua primeira novela, mais tarde premiada). Passou ainda por Oakland, antes de se instalar em Los Angeles, onde, em uma entrevista que durou 27 dias, conheceu seu apaixonado marido, um escritor chamado Luke Goebel.

Seus trabalhos foram aparecendo nos últimos cinco anos. Eileen, seu primeiro romance, foi finalista do Man Booker Prize em 2016 – o trato da protagonista com o próprio corpo e a sexualidade causou espanto. "Eles queriam que eu explicasse como tive a audácia de escrever uma personagem feminina nojenta", disse a escritora. Dois anos depois, em 2018, chegou às prateleiras o livro agora lançado no Brasil pela editora Todavia, com tradução de Juliana Cunha: Meu ano de descanso e relaxamento.

O romance acompanha uma funcionária de galeria de arte de 26 anos que decide "hibernar": dinheiro não é problema, e seu apartamento no Upper East Side, na Nova York de junho de 2000, é o local perfeito. Ela tem uma amiga, Reva, com quem é repetidamente cruel ("Eu já gostei da Reva, mas não gostava mais"), e conversa frequentemente com sua psiquiatra, a dra. Tuttle: "Ela não era uma boa médica. Achei seu número na lista telefônica", diz a personagem – mas seus relacionamentos param por aí. É da caneta da médica que saem as receitas dos remédios, eles mesmos outro personagem.

Embora admita que não reconhecia "nada que justificasse sua decisão de hibernar", a personagem se engaja então numa missão de passar a maior parte do tempo envolta numa nuvem provocada por pílulas de Stilnox, Nembutal, Donaren, Seconal, Valium, Buspirona, Lorax, Gardenal, Frontal, lítio – acredite, a lista continua por vários nomes até chegar a uma substância chamada Infermiterol, e falar mais é estragar parte da surpresa. Dona de uma voz narrativa praticamente palpável, Ottessa é reconhecida como uma das personalidades mais interessantes da literatura americana. A seguir, a entrevista que ela concedeu por e-mail.

Por que você decidiu ambientar o romance em uma era praticamente pré-internet?

Minha decisão de estabelecer o romance em 2000 e 2001 tem menos a ver com meu desgosto pelas redes sociais do que com a enorme impressão que o 11 de Setembro teve em mim como uma pessoa jovem lutando para ter uma noção da realidade... Mas eu realmente acho que o autoisolamento é uma história diferente com internet de alta velocidade e Amazon e Instagram e serviços de entrega de comida. A protagonista no romance tem uma conta da AOL e pede roupas pela internet. Mas ela prefere ser lúdica com sua coleção de fitas VHS. Ela não quer estar "conectada", e eu consigo entender esse impulso.

Você se inspirou em romances sobre drogas? Personagens usando drogas "tradicionais" na ficção aparecem o tempo todo, mas não me lembro de outro personagem com tantas pílulas.

Sou fã dos romances de Charles Bukowski, porque eles falam de maneira muito transparente sobre um ego tentando defender seu tamanho por meio de quantidades massivas de álcool e drama. Mas prefiro narrativas de drogas no cinema e na TV.

O romance é ambientado em período em que o vício em opioides já estava crescendo a taxas preocupantes nos Estados Unidos. Você pensou sobre isso também? Você sente necessidade de se engajar em grandes temas?

A crise dos opioides não chegou de fato ao mainstream até alguns anos atrás nos Estados Unidos. Não estive pensando nisso de maneira nenhuma enquanto escrevia o livro – eu costumo me engajar em temas num nível institucional, mais do que em um claramente político. Sou grata, é claro, que o meu livro possa alargar um entendimento dos perigos da indústria farmacêutica e do que a move. Estou agora escrevendo um livro para o qual tive de pesquisar muito sobre a história do ópio, então isso é algo que me preocupa muito, mas não quero que meu trabalho faça papel de advocacia. Talvez isso me faça uma covarde, mas não me sinto assim.

Talvez seja justo dizer que a protagonista do livro é cruel, mas acessível. Ela diz coisas horríveis, mas também tem essa qualidade sarcástica de que as pessoas podem realmente gostar (penso em Holden Caulfield ou Don Draper, homens de outros tempos). Como o fato de a personagem ser mulher pode mudar essa percepção?

Hum, não sei. Acho que todo mundo sabe que mulheres podem ser tão cruéis quanto os homens. Então não acho que esteja desbravando novos caminhos aqui. Mas talvez o que pode ser novo seja levar a sério a jornada espiritual e emocional de uma pessoa através da autodestruição. E frequentemente atribuímos esse tipo de sofrimento a homens.

A doutora Tuttle é médica, mas não opera de maneira lógica. Essa é uma qualidade perfeita para um personagem de ficção, mas também é um aspecto que aparenta estar mais e mais presente na vida real. Você concorda?

A razoabilidade pode começar a parecer meio arbitrária quando você olha para o desenvolvimento do pensamento humano ao longo da história e do planeta. A insanidade frequentemente aparece como bom senso. E vice-versa. Acho que a insanidade real desses dias é a nossa implacável necessidade de ter fé na autoridade humana. As pessoas falam sobre cultos como se fosse algum tipo de perversão social, mas funcionam quase da mesma forma que qualquer grupo autoidentificado na cultura mainstream. Então, de uma forma, eu admiro a liberdade da dra. Tuttle para seguir o seu próprio compasso e admiro a decisão da protagonista de tomar escolhas de vida a despeito da opinião geral. Isso não significa que eu perdoe receitar drogas para serem abusadas ou perdoe o abuso de drogas. Realmente, acho que a maior parte das pessoas ricas faz o que quer, e elas encontram as pessoas que as ajudam a fazê-lo, especialmente numa cidade tão grande como Nova York. Eu estava interessada nessa história, mais do que em uma moralizadora.

O que mudou na sua mentalidade como escritora de ficção depois da boa recepção do livro?

Quero me esforçar na direção de desafios mais sofisticados e olhar para a narrativa de um jeito maior, em termos de "saga". Também me sinto bem cansada do meu próprio sarcasmo. Acho que o esgotei. Estou mais interessada na beleza da sinceridade esses dias. Então essa é a minha convicção, mesmo que não seja o resultado final. (Agência Estado)


Meu ano de descanso e relaxamento
. Ottessa Moshfegh
. Tradução: Juliana Cunha
. Todavia (240 págs.)
. R$ 54,90


receba nossa newsletter

Comece o dia com as notícias selecionadas pelo nosso editor

Cadastro realizado com sucesso!

*Para comentar, faça seu login ou assine

Publicidade

(none) || (none)