Jornal Estado de Minas

Longa alemão enfoca serial killer para falar de 'geração traumatizada'


Não há salvação para Fritz Honka. Feio, deformado, obtuso, misógino, preguiçoso, alcoólatra e muito sujo – nojento para falar a verdade. Honka personifica uma Alemanha com a qual ninguém se importa: a classe trabalhadora que sobreviveu à Segunda Guerra Mundial e não vê nenhuma perspectiva no futuro. Só que Honka (1935-1998) se sobressaiu em meio a tantos homens e mulheres que viveram na Hamburgo da década de 1970. Entre 1970 e 1975, ele matou quatro mulheres – só foi descoberto porque o apartamento em que vivia pegou fogo, e os bombeiros encontraram partes de corpos escondidos no local.





É este o personagem que emerge no filme O bar Luva Dourada, que estreia nesta quinta-feira (18), no Cine Belas Artes, em Belo Horizonte. Mais recente longa-metragem do cineasta turco-alemão Fatih Akin, de 45 anos, a produção acompanha a trajetória do serial killer, do primeiro crime até sua prisão, com traços para lá de realistas e um clima de humor negro.

Akin, filho de imigrantes turcos nascido em Hamburgo, onde sempre residiu, se destaca na produção alemã contemporânea por uma obra com traços políticos – a sobrevivência das tradições turcas move Contra a parede (2004); a globalização é o tema de Do outro lado (2007); o choque cultural demarca Soul Kitchen (2009) e o extremismo de direita é o objeto de Em pedaços (2017).

O bar Luva Dourada nasceu do romance homônimo, publicado em 2016 pelo escritor Heinz Strunk. Também natural de Hamburgo, Strunk foi alçado à condição de best-seller em seu país com o livro. O título do filme é a tradução literal para Zum Goldenen Handschuh, pub na região de prostituição de Hamburgo frequentado por Honka – o local, ainda hoje, é um lugar célebre na noite daquela cidade.





No pub, regados a bebida barata, independentemente de ser dia ou noite (as cortinas viviam fechadas para que as pessoas não tivessem contato com o mundo exterior), diferentes personagens cruzam com Honka. Todos igualmente pobres, sujos, velhos, sem perspectiva. As mulheres que aceitam, após várias doses de aguardente, ir embora com ele, encontram um apartamento fétido, repleto de imagens pornográficas de mulheres na parede. Após novas doses de bebida, algumas voltaram devidamente para casa. As de menor sorte viraram, literalmente, picadinho.

Akin filma essa história sem alívio para o espectador. A trilha sonora reflete a melancolia e a solidão das personagens. Lançado em fevereiro passado, no Festival de Berlim – no qual Akin já venceu o Urso de Ouro com Contra a parede – o longa sofreu críticas severas, incluindo a de uma suposta falta de propósito em se contar essa história. Depois do explosivo Em pedaços, seu maior sucesso (vencedor do Globo de Ouro de melhor filme estrangeiro em 2018), Akin realizou um filme difícil de digerir. Mas que cala fundo, ao lançar luz em personagens que ninguém quer ver. Na entrevista ao Estado de Minas a seguir, o cineasta justifica suas escolhas.

O bar Luva Dourada não é apenas um filme sobre um serial killer. É também uma narrativa sobre uma Alemanha que não aparece, não importa. Qual foi a sua intenção?
É um filme baseado em um romance que lida com questões que fizeram parte da minha infância, da minha vizinhança. Fiquei muito impressionado com o livro, com a maneira como a narrativa e as pessoas foram descritas. Fiz este filme sobre essas pessoas na Alemanha, pessoas bem velhas, mas que são reais, autênticas. E esta foi a maneira com que a Alemanha refletiu sobre o trauma da Segunda Guerra Mundial. As pessoas falam que a Alemanha soube refletir sobre a guerra, mas foi só a elite que o fez, as pessoas com educação formal, que foram à universidade. A maioria da população, a classe trabalhadora, não fez uma reflexão sobre o passado. Ficaram traumatizados e tentaram apagar os problemas com o álcool. Então este filme foi a oportunidade que tive para refletir sobre uma geração traumatizada.





Você certamente deveria saber que o filme geraria uma polarização. No lançamento, no Festival de Berlim, muitas críticas falaram em misoginia, repugnância e até mesmo uma falta de objetivo em filmar a história de um personagem tão vil. O que diria aos críticos mais contundentes do longa?
Não li as críticas. Para ser honesto, com este filme, pela primeira vez eu realmente me senti como um artista, algo que não aconteceu com minhas produções anteriores. Nos outros filmes, eu me via como um realizador, um cara que sabia que tinha que fazer algo para que os críticos gostassem, os festivais gostassem e o público aplaudisse. Pela primeira vez, não pensei nestas coisas. (Fazer o filme) Foi pura expressão. E quando falamos em arte, algumas pessoas podem enxergar algo naquilo; outras, não.

O ator Jonas Dassler, além de muito jovem (tem atualmente 23 anos; Fritz Honka tinha 35 quando cometeu o primeiro assassinato), chama a atenção pela beleza. Convocá-lo como protagonista foi também uma provocação?
Ele é realmente muito bonito, mas também um grande ator. É um desses atores que você vê surgir na Alemanha a cada 10 anos. Eu não queria chamar os de sempre. Não queria um elenco chato, usual. E, quando vi esse garoto no teatro, fiquei muito impressionado. Como eu teria que trabalhar com muita maquiagem, independentemente de quem chamasse para fazer o filme, eu poderia escolher um ator jovem. Para este longa, não queria um clima fake, de simpatia calculada. Queria escalar alguém jovem que trouxesse alguma inocência ao personagem. Foi um experimento muito interessante.

Até a publicação do livro de Heinz Strunk, quão conhecido era Fritz Honka na Alemanha?
Era muito conhecido, pois foi o autor de uma dos maiores crimes da Alemanha pós-Segunda Guerra. O filme foi muito bem-sucedido no Norte da Alemanha, um fenômeno. Se ele tivesse ido tão bem na Alemanha ou no resto do mundo quanto foi na região Norte, teria se tornado um blockbuster. Eu era muito jovem (quando os crimes ocorreram), mas é claro que tinha ouvido falar. Mas foi o livro que me chamou para a história. Quando passei a trabalhar no filme, todo o mundo da minha vizinhança – alfaiate, médico, vendedoras – vinha comentar comigo que ele tinha frequentado tal lugar, que comprava suas coisas ali perto.





Em pedaços, seu filme anterior, foi também inspirado em uma história real. É mais fácil falar sobre um passado recente ou um passado distante?
Não sei. Os temas dos dois filmes são pessoais, de certa maneira. Eu me importo com o que está acontecendo no mundo. E o que se vê nos meus filmes é a minha realidade. Para tratar dela de forma mais contundente, acho melhor trabalhar a partir de eventos reais, os eventos reais que estão ao meu redor, que são coisas com as quais tenho que lidar. Sou uma pessoa que acompanha os jornais, tenho filhos que, volta e meia, me fazem perguntas para as quais tenho que ter respostas. Então, para tentar compreender a minha realidade, busco trabalhar com ela.
Veja a transformação do ator Jonas Dassler no serial killer Fritz Honka