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"Nós nos acostumamos a nos definir pelo trabalho"

Escritor britânico diz enxergar "fantástica oportunidade para a humanidade" na substituição do trabalho humano pelo de robôs, desde que possamos "aprender a nos definir pela vida"


postado em 01/07/2019 04:10

Ian McEwan lança Máquinas como eu, que aborda a relação entre um homem, uma mulher e o robô adotado por ele(foto: Luiz Munhoz/Estadão - 27/10/16)
Ian McEwan lança Máquinas como eu, que aborda a relação entre um homem, uma mulher e o robô adotado por ele (foto: Luiz Munhoz/Estadão - 27/10/16)

O ano é 1982: a primeira-ministra Margaret Thatcher envia uma força expedicionária para reaver as Ilhas Malvinas. Na vida real, vence a guerra; no novo livro do romancista inglês Ian McEwan, as tropas são repelidas pelos argentinos com uma tecnologia balística baseada em algoritmos do matemático Alan Turing (1912-1954). Na vida real, Turing morreu precocemente; em Máquinas como eu (Companhia das Letras), ele viveu o bastante para pavimentar a construção de robôs quase indistinguíveis de seres humanos.

Nesse 1982 alternativo, smartphones, internet e inteligências artificiais convivem com uma decepcionante turnê de reunião dos Beatles. "O presente é o mais frágil dos artefatos improváveis", pensa o protagonista Charlie Friend. "Podia ser diferente. Qualquer parte dele, ou sua totalidade, podia ser outra coisa."

Acumulando fracassos, inculto, formado em antropologia, mas amante de eletrônica, Charlie leva (mal) a vida apostando na bolsa. Quando surge uma nova coqueluche tecnológica, ele usa o dinheiro de uma herança para comprar o androide Adão (as ginoides Eva já estavam esgotadas), aquisição que acaba servindo para aproximá-lo da vizinha de cima, Miranda, por quem se apaixona e com quem divide a criação do robô.

Como em um jogo de espelhos, McEwan brinca o tempo todo com a dualidade humano-robô. Por vezes, o relacionamento de Charlie e Miranda é tão frio e artificial que eles parecem as máquinas, enquanto o fascínio infantil de Adão pela arte, ciência e filosofia é tão genuíno que ele soa muito mais real. Quando os três visitam o pai de Miranda, ele pensa que o oco Charlie é o robô e passa a entabular uma profunda discussão sobre Shakespeare com o erudito Adão.

O Teste de Turing, desenvolvido em 1950 para determinar a capacidade de uma máquina de se passar por um humano, conduz à proposição de que, se um robô é indistinguível de um ser consciente, deve ser tratado como tal. Os dilemas morais derivados daí começam a se insinuar quando Miranda "trai" Charlie com Adão: "Minha situação tinha um aspecto excitante, não apenas de subterfúgio e descoberta, mas de originalidade, de precedência moderna, de ser o primeiro homem corneado por um artefato", confessa Charlie para si.

Máquinas como eu vem sendo rotulado como um triângulo amoroso, mas é muito mais que isso. Subjacente a essa trama, o passado de Miranda retorna para acossar o trio: ela teria dado falso testemunho em um tribunal. É possível que o leitor considere que seu crime foi cometido por uma razão justa, mas Adão segue um código moral muito mais rígido e, talvez, assustadoramente, melhor que o nosso. E é justamente nessa dissonância moral que reside a tensão do romance.

Autor de dezenas de histórias sobre o tema, Isaac Asimov (cujas leis da robótica são citadas no livro, embora burladas quando Charlie tenta desligar Adão, que quebra seu pulso) mostrou o lado sombrio do convívio com robôs, como a mecanização do trabalho, em As cavernas de aço (1953). Mas, assim como McEwan, Asimov vislumbrou as máquinas como seres potencialmente mais sábios para tomar decisões do que humanos em contos como Evidência (1946) e O conflito evitável (1950), incluídos na coletânea Eu, Robô. Já Philip K. Dick, em Androides sonham com ovelhas elétricas? (1968), partiu para um questionamento menos social e mais existencial com seus perturbadores replicantes, capazes de se misturar na sociedade e borrar as fronteiras entre orgânico e mecânico, colocando em xeque a condição humana. Em Dick, qualquer um pode ser um robô. O incipit do conto A formiga elétrica (1969) resume o assombro de sua obra: "O que você sentiria, depois de pensar que era homem, se um belo dia acordasse e descobrisse que tinha virado robô?".

No livro de McEwan, de 71 anos, o incômodo está em se deparar com uma versão melhorada de si. Adão compõe haicais, filosofa sobre a vida e a morte e ainda detém um senso moral muito mais apurado que os falhos Charlie e Miranda. Esse é o cerne de Máquinas como eu: em um mundo no qual delegamos cada vez mais decisões morais às inteligências artificiais, devemos acatar passivamente a dependência cada vez maior da humanidade em relação às máquinas? O último poema de Adão soa como um vaticínio: "É sobre máquinas como eu e gente como vocês, e nosso futuro juntos… a tristeza que está por vir". (Agência Estado)

Apesar de parecer moralmente mais rígido, Adão rompe as leis da robótica ao machucar Charlie. Ele também teria seus desvios de caráter?
Há duas questões aí. O primeiro ponto é a diferença moral de Adão para Miranda. Se ela deve ir para a prisão ou não, porque mentiu em um tribunal. Creio que qualquer pessoa acredita que a ação de Miranda é justificável, mas Adão tem uma visão moral mais consistente. Então, estou abrindo a possibilidade de que nós poderíamos acabar criando seres artificiais moralmente superiores a nós, não inferiores. Sobre o pulso quebrado, deixo a ambiguidade quanto a ter sido acidental ou não. A única certeza é que, se você tem uma consciência, e pensamos que Adão tem, faria qualquer coisa para defendê-la.

Como o senhor vê robôs tomando decisões morais na vida real, como carros autônomos no trânsito?
Os veículos autônomos terão de decidir quanta proteção fornecer ao motorista e aos pedestres. Esse é um ótimo exemplo de como estamos delegando às máquinas algumas decisões morais importantes. Sacrificar a vida do motorista para salvar a do pedestre se torna um dilema no qual as máquinas podem ser melhores que nós. Em meio segundo, um humano não tem tempo de pensar, mas uma máquina pode analisar todo um leque de possibilidades. Mas é um ponto de virada muito importante para a raça humana. Tivemos a tragédia do Boeing 737-Max, em que o computador decidiu que o avião estava em estol (caindo), quando não estava. Como em 2001: uma odisseia no espaço, o piloto não pôde se impor à máquina.

Quão grave será a robotização do trabalho?
Se pudermos mudar nossos conceitos sobre trabalho, será uma fantástica oportunidade para a humanidade. Nós nos acostumamos a nos definir pelo trabalho. Talvez agora possamos aprender a nos definir pela vida. Diversos economistas estão escrevendo sobre isso: se robôs tomam empregos, seus donos devem pagar impostos sobre seus lucros. Para isso, precisaríamos de uma renda universal. E também teríamos de ser muito generosos, redefinindo para que servem lucros. Não para acionistas, mas para todos cujas atividades foram assumidas por máquinas. Isso demandaria uma transformação muito grande em nossa mentalidade. Mas deveríamos nos lembrar de que, por muitos séculos, os aristocratas viveram sem trabalhar. Se a aristocracia pôde viver sem empregos, qualquer um consegue.

Adão escreve haicais, mas não romances. O senhor teme que robôs possam nos superar na literatura?
Já existem inteligências artificiais produzindo arte abstrata ou música barroca, mas acredito que escrever um romance requer uma compreensão absoluta do coração humano. A partir do momento em que um robô escrever um romance muito bom, ou mesmo um ruim, acho que devemos admitir que ele é consciente. Embora eu não ache que isso vá ocorrer nos próximos 15 anos ou enquanto eu estiver vivo, é concebível.

Se “o presente é o mais frágil dos artefatos improváveis”, isso suscita interpretações ambíguas: temos livre-arbítrio e podemos alterar a realidade ou não temos nenhum poder de escolha e o passado determina o presente?
O presente é muito frágil. Uma das razões que nos fazem tentar tão arduamente prever o futuro, mesmo que nós mesmos estejamos produzindo esse futuro, é que, a cada instante, as possibilidades, tanto individuais quanto coletivas, são muitas. Há vários momentos em que sabemos quão facilmente as coisas poderiam ter sido diferentes. Vocês poderiam ter um outro presidente, nós poderíamos não estar discutindo o Brexit, a Guerra das Malvinas poderia ter ido para outra direção. E, no nível individual, somos filhos de adultos que poderiam tranquilamente nunca ter se conhecido. Sua mãe poderia ter ficado em casa no dia em que conheceu seu pai. Imagine que, em qualquer segundo, as possibilidades do destino humano se ramificam, se multiplicam diante de nós, como no conto de Borges, O jardim dos caminhos que se bifurcam. Situei o livro nos anos 1980 para não ter de arriscar previsões e apenas me permitir especular sobre o destino humano e social. Sobre o livre-arbítrio… Eu não acredito no livre-arbítrio, não consigo ver nenhum argumento para embasá-lo. Não escolhemos nossos pais, nossa infância. Mas ele parece ser uma ilusão necessária de que somos responsáveis por nossos atos, especialmente no âmbito legal. O livre-arbítrio é uma ficção muito importante com a qual temos de conviver.

Em outras entrevistas, o senhor afirmou que seu livro não é uma ficção científica. Por quê?
Não penso exatamente assim. Fiz uma piada sobre sapatos antigravidade e isso foi noticiado como se eu odiasse o gênero. A ficção científica que eu amo é a literatura que explora os dilemas humanos em relação às novas tecnologias. Filmes como Blade Runner, Ex Machina ou Westworld, ou livros como Admirável mundo novo, de Aldous Huxley, ou 1984, de George Orwell. Estou menos interessado em viagens espaciais ou civilizações remotas, pois acredito que esse é um excelente caminho para explorar como lidamos com novas tecnologias e qual o seu impacto em nossa sociedade. Fico feliz em chamar esse livro de ficção científica, é uma grande tradição.


Máquinas como eu
• Ian McEwan
• Tradução: Jorio Dauster
• Companhia das Letras (328 págs.)
• R$ 58,90 
• ebook: R$ 38,90


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