Jornal Estado de Minas

"O momento é de ação", diz diretora de Macunaíma

Na cabine de luz do teatro do Centro Cultural Banco do Brasil, em Belo Horizonte, na noite da última sexta (28), a encenadora Bia Lessa prendeu a respiração. O manto da macumba, que comporia um dos personagens de Macunaíma, não havia acendido. “Quando ele entrou todo apagado, para mim foi como uma facada no peito. E não é porque é bonito, mas porque (a luz) tem um significado. Sem luz, ele fica 'quebrado', não fica explícito o discurso que está por detrás daquilo”, comenta ela na manhã seguinte, ao receber a reportagem no hotel em que a equipe do espetáculo se hospeda.

Ninguém da plateia que lotou o teatro na estreia nacional dessa montagem do texto de Mário de Andrade com a Cia. Barca dos Corações Partidos notou que a cena estava incompleta. No sábado à tarde, Bia Lessa se reuniu com todo o elenco e equipe técnica para fazer os apontamentos da primeira apresentação do espetáculo, cuja preparação foi feita ao longo dos últimos oito meses. À noite, ela voltou à cabine de luz do teatro para acompanhar as três horas de encenação na segunda noite de Macunaíma em BH.
E assim deverá ser durante toda a temporada da peça na capital mineira, que irá até o próximo dia 14.

Macunaíma é o terceiro espetáculo que Bia Lessa assina nos últimos três anos. Depois de algum tempo sem fazer teatro, ela voltou à cena em 2017, com a instalação cênica Grande sertão: veredas. A celebrada montagem protagonizada que tem Caio Blat no papel de Riobaldo está em cartaz em Niterói e prestes a ganhar sua versão cinematográfica. O longa Travessia tem previsão de lançamento para este ano. Em 2018, Bia Lessa, de 61 anos, voltou à tona com PI – Panorâmica insana, outro sucesso de crítica.

Embora sejam absolutamente díspares, as três montagens têm pontos em comum. Tanto Grande sertão quanto Macunaíma terminam com o mesmo gesto de um ator emulando um pássaro. E Macunaíma começa com um cenário único – um plástico preto, que vai se transformando de acordo com a ação dos atores, algo utilizado na sequência final de PI.

É o diálogo e suas diferentes formas – entre palco e plateia, entre duas ou mais pessoas – que interessam a Bia.
“A gente aqui conversando, um olhando para o outro... O resto, nada mais vale na vida”, afirma a diretora, olho no olho, durante a entrevista a seguir.

Qual é a importância de uma estreia?
É, de fato, quando você trava o diálogo com o outro. A beleza da vida é o diálogo. Não é fazer sucesso, isso é uma questão que não entra para mim. O que nós estamos dizendo é isto, o que vocês (da plateia) estão dizendo daí? A estreia é quando você entrega algo que, para você, é muito sagrado. Eu vivo realmente para isso. E não é só a estreia. Vejo todas as apresentações, na medida do possível, e corrijo diariamente.
A beleza de qualquer evento ao vivo é a possibilidade de crescer e ir revendo sempre.

No primeiro ato de Macunaíma você constrói um mundo com luz, som e plástico preto, extraindo o máximo do mínimo. É este o teatro que lhe interessa?
Tem uma coisa que é do Brasil. A gente vive num mundo com essa pobreza tão grande. Fazer (teatro) com palco giratório, com não sei o quê que voa, representa menos o que a mim interessa, que é uma discussão com a atualidade. Discussão com a nossa realidade, que é de uma pobreza descarada. Há uma potência criativa de fazer (teatro) com nada, isso é também um pouco do otimismo do Brasil. Apesar de a peça ser triste, ela é otimista, tem vida.

No espetáculo, os corpos estão, na maior parte do tempo, nus. No entanto, o que chama a atenção não é a nudez, mas a força e, por vezes, a agressividade dos corpos. Qual é a importância do corpo para você? 
O ser humano é muitas coisas. Cada vez mais, o discurso é uma parte pequena de nós.
E o corpo é uma parte imensa da gente. A gente se entende muito pelo corpo. Acho que a própria ruga que vai ficando no rosto é um desenho do que construímos para a gente. A importância do corpo numa expressão artística é fundamental. É como se deixasse concretas as personalidades. O ato da doação física é muito visível. E,  ainda mais hoje em dia, é muito importante que se diga, nós que já nos escondemos tanto, atrás de tudo, de roupas. Esse espetáculo não tem nu, ele tem é pelado mesmo.

E fazer o agradecimento com o elenco sem roupas dá ainda mais força ao espetáculo.
E sem pornografia, sem erotização. É quase um nu infantil. Eu tinha usado um nu no agradecimento lá atrás, em Orlando, com a Fernanda Torres (a montagem do texto de Virginia Woolf foi em 1989).
No final, cada um entrava com seu personagem. A Nanda era o Orlando, que virava homem/mulher. No final, ela vai vir de quê? De homem, mulher? Pelada. Quando ela entrou pelada para os agradecimentos, foi uma comoção. E a gente foi entendendo, aos poucos, que esse momento do agradecimento é sério. É o momento em que você para de frente para o outro, e o outro, que o ouviu durante tanto tempo, vai dizer para você: “Vá à merda, muito obrigada, gostei, não gostei, sai daqui”. E você, estando nu, torna aquilo ainda mais sagrado. É o que é, somos como somos: feios, bonitos, gordos, magros.

Como está sendo trabalhar com um grupo de teatro que já tem sua própria história?
Quando a Andréa (Alves, diretora de produção de Macunaíma) me chamou, a primeira coisa que pensei é que não gosto de grupo, porque não gosto de unanimidade, gosto de trabalhar com coisas variadas. E um grupo, por mais genial que seja, aos poucos vai ficando homogêneo. As pessoas vão pensando as mesmas coisas. Já tive um grupo. E gosto, para cada trabalho, de ter participações muito diferentes umas das outras. O bacana é o choque, a fricção. O que fizemos foi chamar outras pessoas (a Cia. Barca dos Corações Partidos tem sete integrantes; no espetáculo, o elenco tem 14 pessoas). Isso deu dinâmica para o grupo. São pessoas disponíveis, a fim de fazer um trabalho como esse, que é insano pelas horas de trabalho. Não dá para entrar num Mário de Andrade sem saber o leão que se vai encontrar. Fora isso, ainda é um espetáculo que o Antunes (Filho) montou extraordinariamente (a montagem original é de 1978). E ele é meu mestre. Ou seja, este espetáculo é também um diálogo de uma aluna com um mestre.

Você chegou a falar diretamente com Antunes Filho sobre montagem?
Não dava. Quando saí (do Centro de Pesquisas Teatro, CPT, grupo criado por Antunes Filho) ele ficou muito magoado. Ele cria as pessoas. E tem uma hora em que as pessoas têm que sair. Para mim, foi tão forte sair do Antunes que mudei de São Paulo para o Rio. Falei: “Não dou conta de ter minha vida artística paralela a esse gênio, tenho que ir embora. Tenho que esquecer esse cara, quer dizer, nunca esquecer, mas travar um diálogo com ele.” Tanto que todo o meu método de trabalho é muito em cima do dele, mas o oposto. Ele é um cara que ensaia 50 mil horas para buscar um gesto que está na cabeça dele. Eu não acredito em algo que está na minha cabeça e que não está na do outro. O que quero é que o outro crie um gesto que seja só dele. É um método muito da diferença. Disse para a Andréa que eu achava que tinha que pedir permissão (a Antunes para montar Macunaíma). Ela falou com Danilo (Miranda, diretor do Sesc-SP, que abriga o CPT), que foi ao Antunes. Foi bonito receber por um terceiro a permissão. Mas foi muito dura a morte dele no meio do percurso (Antunes morreu em 2 de maio, aos 89 anos). Porque, em algum lugar, uma das delícias de fazer o Macunaíma com essa visão tão diferente da dele era (imaginar) sentar ao lado dele, dar a mão para ele – a minha relação com ele era muito física – e a gente travar um diálogo. Quando ele morreu, foi um baque.

Você fala mais em escritura cênica do que em direção. Você dirige teatro e cinema, faz cenários para shows, monta exposições. Como você se define?
A primeira coisa que vem é trabalhadora. Sou uma operária. Vivo para fazer esse negócio. É a coisa mais importante da minha vida. Quando você escolhe uma coisa, essa escolha nos faz. E quando você nasce com essa possibilidade de fazer coisas, escrever, cortar cabelos, construir casas, aquilo é importante, pois será a marca que você vai passar para o outro. É, de novo, o diálogo. Não é uma peça, entendeu? Não faço uma peça, outra peça, outra peça. É um pedaço da minha vida que estou botando ali. Não faço teatro sempre, é muito difícil, tenho que ter o que dizer naquela hora. E acho que, agora, neste momento, primeiro temos que estar juntos e, segundo, temos que estar em ação. Não dá para a gente estar em casa lendo livro agora em momento de reflexão. O momento é de ação. De peito aberto, nu.

MACUNAÍNA – UMA 
RAPSÓDIA MUSICAL
De Mário de Andrade. Direção: Bia Lessa. Com A Barca dos Corações Partidos. Em cartaz no Teatro 1 do Centro Cultural Banco do Brasil, Praça da Liberdade, 450, Funcionários, (31) 3431-9400. Apresentações de quinta a segunda, às 20h, até dia 14. Sessão extra nesta quarta (3) com acessibilidade. Duração: 180 minutos (com um intervalo). Classificação etária: 18 anos. Ingressos: R$ 30 e 
R$ 15 (meia).
.