Em 1587, um editor alemão publicou o livro de um autor anônimo com título extenso o bastante para resumir a saga do famoso necromante João Fausto, que firmou um contrato com Satanás por 24 anos, cedendo sua alma em troca de conhecimento. A história desse mago e pactário alemão foi interpretada por escritores, dramaturgos e cineastas desde então. Entre eles os alemães Goethe (1749-1832) – seu Fausto ganhará nova edição em agosto, com tradução de João Barrento, para a editora Autêntica – e Thomas Mann (1875-1955). No cinema, a versão recente do diretor russo Sokurov, Fausto (2011), ousou amalgamar os dois. No teatro, a primeira releitura ocorreu após a introdução da história original do doutor João Fausto na Inglaterra. Encenada em 1588 ou 1592, a peça de Christopher Marlowe, A trágica história do doutor Fausto, é agora lançada em coedição pela Ateliê Editorial e Editora Unicamp com tradução de Luís Bueno e Caetano W. Galindo.
Além da peça, a nova edição traz o texto que deu origem a ela, A história do doutor João Fausto, traduzida por Mário Luiz Frungillo, além do posfácio assinado por Patrícia da Silva Cardoso, doutora em teoria e história da literatura. Nesse ensaio, ela analisa histórias de pactários, desde o mago Simão, que aparece nos Atos dos Apóstolos e seria uma versão mais antiga de Fausto, até seus mais famosos correspondentes literários, detendo-se especialmente no Fausto, de Marlowe (1564-1593), o existencialista antes dos existencialistas, que, ao contrário do que diria Sartre séculos depois, não achava que “o inferno são os outros”.
Basta uma passagem da peça de Marlowe para atestar a existência do território infernal na alma de Fausto. Ele desconfia que pode ser ludibriado por Mefistófeles, que o demônio lhe prega uma peça quando invocado. E pergunta ao emissário de Satanás como pode estar fora do inferno se os dois conversam em seu gabinete de trabalho. Mefistófeles, então, responde que o inferno é ali mesmo. “Pensas que quem viu a face de Deus/ E provou dos prazeres do céu/ Não se atormenta com dez mil infernos/ Ao ser privado do êxtase eterno?”. Mas a explicação, observa a autora do posfácio, escapa ao arrogante Fausto.
MAGIA Quando a peça começa, o espectador ouve Fausto dar adeus à teologia e afirmar que “os livros nigromânticos são divinos”. Inconformado com os limites do conhecimento, o doutor não se satisfaz mais com a ciência medieval e busca na magia uma resposta para suas inquietações – ou seja, Fausto afirma-se como um homem do Renascimento, zombando das leis, da lógica e, principalmente, da religião do mundo antigo.
Quando a peça de Marlowe estreou na Inglaterra do século 16, a doutrina calvinista estava em alta.
Evoque-se que Fausto, mais de uma vez, é advertido antes de assinar com seu sangue esse contrato satânico. Na cena final, a enigmática figura de um velho surge e pede ao mago que se arrependa, replicando a cena inicial em que o anjo bom e o anjo mau disputam a alma do doutor. Até mesmo o ambíguo Mefistófeles, dividido entre levar o mago diretamente ao inferno ou poupá-lo, tenta dissuadir o protagonista.
O conflito entre os valores medievais e renascentistas, escreveu o acadêmico R. M. Dawkins, é traduzido nesse ponto sem volta. Se o mundo medieval colocava Deus no centro da existência, o mundo renascentista jogou o foco no homem. A teologia, então, deu lugar ao conhecimento secular.
AMBIÇÃO O discurso final de Fausto na peça de Marlowe, antes que os demônios o levem para o inferno, traduz esse desespero, a vontade de ser salvo de um mundo de escuridão e de almas condenadas pela ambição. Fausto teria preferido que Pitágoras tivesse razão, que sua alma pudesse ser transferida para o corpo de um bicho irracional, mas teme que a doutrina da transmigração das almas seja apenas um mito.
“Num ambiente em que o conhecimento começava a ser visto como resultado da investigação direta do mundo, autonomamente ao que era assumido como verdade instituída a partir dos dogmas religiosos, o pacto de Fausto encena o perigo de lançar-se individual à busca do conhecimento, sem o respaldo de qualquer lei previamente instituída”, observa Patrícia da Silva Cardoso no posfácio da nova edição.
No entanto, o papel do diabo, na história original do doutor Fausto, é diferente da versão teatral de Marlowe. Ela observa que, na peça, a responsabilidade de Satanás é “relativizada”, cabendo a Fausto a culpa por sua queda. “A atenção de Marlowe ao indivíduo como instância autônoma transparece também no final do texto”, observa a autora do posfácio, citando o pedido de Fausto a seus amigos, no epílogo, para que se mantenham afastados e não intercedam por ele quando chegarem os demônios, garantindo que seja ele o único arrebatado ao inferno.
No Fausto de Goethe, ao contrário, conclui a professora, a trajetória do doutor “aponta para uma demoníaca pacificação do indivíduo”, apresentando a reconciliação como resposta – Fausto, o homem, é salvo, redimido, e sua alma imortal é levada por anjos, a despeito de sua perpétua insatisfação, a mesma do homem moderno.
PESSOA Patrícia Cardoso cita ainda uma outra versão, a do poeta português Fernando Pessoa, em cuja obra Fausto, tragédia subjetiva (inacabada), a questão do indivíduo e seus limites é retomada em dimensão mais contemporânea, tratando da autoexclusão provocada pelo sentimento de superioridade do doutor.
Talvez fosse o caso do próprio Marlowe. Nascido em Canterbury, em 1564, mesmo ano de nascimento de Shakespeare, Christopher Marlowe estudou em Cambridge. Tudo indicava que seu caminho seria o de um clérigo respeitado pelos fiéis, mas Cambridge suspeitava de que ele tivesse se convertido ao catolicismo, fé combatida na Inglaterra do século 16, onde o protestantismo era a religião oficial.
Seja como for, Marlowe virou ator, dramaturgo e poeta ao deixar Cambridge e se estabelecer em Londres. Escreveu sete peças, todas populares (Tamburlaine, O judeu de Malta, Eduardo II e A trágica história do doutor Fausto, entre elas). Tudo ia relativamente bem até ser preso, em 1593, acusado de heresia.
Espião, herege, blasfemo, praticante de magia, muito já foi dito sobre a conduta de Marlowe, que projetava em seus personagens a própria sexualidade – exemplo disso é a relação homossexual entre o rei e seu protegido Galveston descrita na peça Eduardo II, o que historiadores mais modernos contestam. Era uma obsessão para Marlowe, que militava contra a homofobia e pode ter sido assassinado por ordem governamental. Um documento de 1593 registra a declaração do espião informante Richard Baines de que o dramaturgo blasfemou mais de uma vez e insistia que Cristo era gay. Esse documento, que pode ser conferido pelo público na British Library, é de 1593, mesmo ano da prisão de Marlowe. (Estadão Conteúdo)
TRECHO
“Pensas que quem
viu a face de Deus
E provou dos prazeres
do céu
Não se atormenta
com dez mil infernos
Ao ser privado
do êxtase eterno?”
A trágica história do doutor Fausto, de Christopher Marlowe
A TRÁGICA HISTÓRIA DO DOUTOR FAUSTO
De Christopher Marlowe
Ateliê Editorial
488 páginas
R$ 120
.