UMA DATA ESPECIAL
O fim de ano da coluna é marcado por histórias escritas a várias mãos. De hoje a quarta-feira, o leitor vai saborear textos de músicos, escritores e professores que enfrentaram o desafio com criatividade. Convite aceito, cada autor teve dois dias para redigir um parágrafo, que seria enviado para outras pessoas até a história ser concluída. A única exigência é que o tema fosse a virada de ano. Quem abre o especial são os músicos João Ferreira, Bernardo Cipriano (banda Daparte), Bernardo Bauer (banda Moons), Júlia Gutierrez e Gentil Nascimento (Julie & Gent).
Eu me encaixava no ônibus, voltando do Centro. Já tinha quase a altura da minha avó. Faltava só mais um pouquinho ou um sapato mais alto. Mas, nesse dia, usava tênis baixos, de lona branca e encharcada.
– Menina! Já te disse pra não vir pro Centro com esse tênis! Novinho... Depois, pra limpar eu pago meus pecados!
– Mas, vó, eu que ganhei!
– Eu sei, minha filhinha, mas que ideia de jirico... Tudo enlameado nesse Centro, tudo sujo... Agora vou ter que limpar. No réveillon a gente usa branco!
– Por que tem esse nome estranho? Réveillon...
– Sei lá, Simone... Chama assim desde antes de eu ser menina. Deve ser coisa de fora...
– Posso chamar a Ângela?
– Não, meu anjo... Não cabe no carro. Além disso, ela tem que passar com a família dela, né?
– Mas e depois, a gente volta pra casa, uai!
– É... Depois a gente volta pra segunda-feira... Mas vamos, que hoje ainda a festa começa!
JOÃO FERREIRA
***
O ônibus parou bem em frente à marquise da casa onde morava minha avó. Debaixo da chuva e da minha empolgação, as próximas horas passaram bem devagar. Minha avó me fez prometer que ficaria comportada e não me sujaria mais. Disse que minha roupa tinha que estar perfeita para a festa.
Enquanto ela esfregava meu tênis para ficar branquinho de novo, tentei fazer alguma coisa para passar o tempo.
Passei o resto da manhã explorando os quartos e corredores que já conhecia tão bem, abrindo as gavetas que, já sabia, não tinham nada. Só continuei animada porque estava quase na hora do almoço, e hoje seria especial. Sempre era, nos dias de festa.
Quando finalmente tocaram os 12 sinos da igreja da rua de baixo, guardei a escova que achei no quarto da minha tia e me preparei para correr para a mesa. O almoço na casa da avó sempre ficava pronto na hora. Vi que não estava mais sozinha no quarto. Na janela, um gato preto me olhava com grandes olhos amarelos. Nunca vi olhos como esses.
Toda a fome que estava sentindo foi embora, tudo que conseguia fazer era olhar de volta para o gato. De repente, ele se virou e pulou para a rua. Sem pensar, peguei o banquinho ao lado da cama e coloquei debaixo da janela. Cheguei na rua e ele parecia estar me esperando.
BERNARDO CIPRIANO
***
Enquanto caminhava, ia me lembrando de tudo o que minha tia Carmen falava sobre gatos pretos. Quando pequena, ela me assustava com histórias de que eles escondem segredos, que não devem ser perseguidos, que dava azar ou coisa do tipo. Que azar que nada! O bichinho é fofo, os pêlos tinham a textura do Ted, meu coelhinho. Não sei de onde a tia inventava esse medo. E, além de tudo, só queria ver de perto o gatinho, fazer um carinho nele.
Ele parou do outro lado da rua, parecia me esperar. Ao atravessar, quase fui atropelada pela motoqueira que sempre passava por ali às 12h15. Pensei: estou atrasada pro almoço, vovó não gosta de atrasos e a tia Carmen vai estar lá com aquela cara de carranca que sempre carrega. “Tatiana é doida, essa menina não bate bem!”.
Quando cheguei perto do gatinho, ele rolou no chão e vi que tinha uma ferida por baixo da barriga. Quis cuidar, levar ele pra casa, mas sabia que lá na casa da vó ele não seria bem recebido.
– Moço, olha só como ele tá. Ele precisa de cuidado, você conhece algum veterinário?
Ele fez que não com a cabeça e se aproximou. Parecia ser um rapaz bom, agachou ao meu lado e o bichinho foi lamber a sua mão. Falou comigo:
– Você sabe o que significa isso? Gato preto no último dia do ano significa muita sorte, mas você tem que passar a virada com ele.
BERNARDO BAUER
***
Assim que o moço terminou a frase, ouvi os gritos estridentes da minha avó me chamando para almoçar. Afinal, era dia de festa e o almoço era pontual. Uma espécie de tradição familiar que, às vezes, parecia não fazer muito sentido. Olhei para ela, olhei para o moço, olhei para o gato. A dó do gato e a afirmação do moço se opunham à pressa da minha avó e à possível proibição de levar um gato desconhecido para dentro de casa. E com um ferimento, para completar o pacote.
Fiquei confusa, levemente desorientada. Afinal, havia uma tradição familiar, uma superstição de ano-novo e um gato preto em jogo. Sem muito pensar, peguei o gato no colo e atravessei a rua correndo, sem perigo de atropelamento desta vez – quem sabe já era a sorte do bichinho fazendo efeito?
Olhei para o moço que ficara distante, dei um sorriso de agradecimento e medo do que pressentia estar por vir. Ele sorriu de volta e entrei em casa. Eu, descalça, e o gato. Minha avó estava tão preocupada com a refeição que demorou a perceber o novo convidado. Mas, em cinco minutos, aqueles mesmos gritos estridentes fizeram tremer as janelas da casa. Um gato preto em pleno réveillon! O que para o moço era um claro sinal de sorte, para a minha avó era a comprovação de um azar terrível a nos acompanhar pelos próximos 365 dias.
JÚLIA GUTIERREZ
***
– Simone, você enlouqueceu? – vovó disse, ao levar as mãos à testa e quase simular um desmaio.
A travessa de arroz de forno se espatifou no chão e o gato, assustado, pulou no colo da tia Carmen, que, aos berros, chutou a mesa e derrubou todos os copos no chão. Foi uma cena de guerra, ou melhor, cena de hospício.
– Já falei que essa menina precisa levar umas palmadas! – disse tia Carmem, tirando uvas-passas do cabelo da vovó.
– Ele está machucado, precisa de um lar. Pensei que seria um dia especial para ajudar um animalzinho. Vou cuidar dele.
– Simone Manuela! Leve esse gato para a rua agora, ou vai passar a virada de réveillon presa no quarto – disse tia Carmem, espumando gotículas de baba por todo o meu vestido.
Fechei as mãos, olhei para o chão, respirei:
– Prefiro ficar sozinha no quarto a não ajudar o bichinho. Virei a cabeça para esconder a orelha, esquecendo-me do que a outra estava oferecendo.
Ding dong.!!! Ding dong.!!! Ding dong!!! – soou a campainha.
– Quem é?
– É a Luizinha! Ouvi dizer que acharam meu gatinho na rua!
Vovó abriu a porta. Luizinha era a menina mais metida da rua. Jogamos bola algumas vezes, mas sempre tinha que voltar para casa. Seus pais pareciam bem bravos. Ela estava impecavelmente arrumada, prontinha para a festa no clube de Termópolis. Seus olhos estavam inchados e, rapidamente, seu semblante se transformou em felicidade ao ver o gatinho são e salvo.
– Nem sei como agradecer a vocês três. Estava desesperada para encontrar o Jairo. Nem sei como agradecer...
– Não precisa agradecer. A gente fez o que achou certo – disse tia Carmem.
Engasguei.
– Já sei! Meu pai trabalha lá no clube de Termópolis, vou pedir a ele que passem o réveillon conosco em uma mesa de frente para a lagoa, lugar especial para assistir aos fogos. O que acham? Vou pedir também que toda a comida e a bebida sejam por conta da casa. Ainda assim, não seria suficiente para agradecer tamanha bondade.
Ela levou o gato e ficamos caladas enquanto arrumávamos a casa. Eventualmente, pegava vovó olhando pra mim enquanto varria o arroz.
– Trêêês, doois, uuum.! Feliz ano novo.!!! Nunca pensei que teria um réveillon tão chique – disse tia Carmem, com a boca cheia de farofa.
– Olhem, minha filha e minha netinha. Tem coisa neste mundo que nunca muda. Uma delas é a generosidade: mesmo tardia, é sempre retribuída. Tenho muito orgulho de você, Simone. Obrigada pela lição que você nos deu hoje. Às vezes nos acostumamos com nossos próprios preconceitos e esquecemos que estender as mãos é sempre a melhor garantia de ter mais amor à nossa volta. É o que desejo para 2019: menos preconceito e mais amor. Feliz ano novo!
GENTIL NASCIMENTO.