Há cinco anos, questionado sobre como gostaria de ser lembrado, o cineasta italiano Bernardo Bertolucci respondeu prontamente: “Não me importa”.
O anúncio da morte do mestre do cinema italiano, ontem, aos 77 anos, em sua casa em Trastevere, Roma, em decorrência de um câncer, trouxe à tona as diversas facetas do realizador. Diretor, produtor, roteirista, Bertolucci pode ser lembrado de diferentes maneiras. Seus filmes – duas dúzias, entre curtas e longas, documentários e ficção – falam por ele.
Foi polemista em Último tango em Paris (1972). A cena de sodomia com os personagens de Marlon Brando e Maria Schneider gerou tamanha controvérsia que Bertolucci respondeu por ela até recentemente (leia nesta página). Schneider contou não saber da icônica “cena da manteiga”.
O marxista Bertolucci levou a política para tramas que tinham a história da Itália como pano de fundo: do drama amoroso Antes da revolução (1964) – onde ele próprio pode ser visto como o burguês que enxergou no proletariado seu ideal de futuro – ao épico 1990 (1976), em que acompanhou os movimentos sociopolíticos da Itália na primeira metade do século 20.
Foi minimalista e grandioso. Levou imensas plateias a se deleitarem com cenários “exóticos” de O último imperador (1987) e O pequeno Buda (1996). Ao mesmo tempo, redescobriu que pequenos dramas pessoais podiam levantar grandes questionamentos (Os sonhadores, 2003).
Sexo, política e psicanálise foram temas caros a Bertolucci. Nascido em 16 de março de 1941 em Parma, Nordeste da Itália, ele cresceu em um ambiente rico e intelectual.
Entre os prêmios que recebeu estão o Leão de Ouro no Festival de Veneza (2007), a Palma de Ouro honorária no Festival de Cannes (2011) e os Oscars de melhor diretor e roteiro, dividido com Mark Peploe (1988).
Pasolini, Luchino Visconti, Roberto Rosselini, Federico Fellini, Michelangelo Antonioni foram embora há mais tempo. Há pelo menos uma década Bertolucci ocupava o espaço de último realizador italiano com projeção mundial. Espaço, aliás, que ocupava sobre uma cadeira de rodas, consequência de uma cirurgia de hérnia de disco.
Seu último filme foi a participação em Future reloaded, lançado em 2013, nos 70 anos do Festival de Veneza. Setenta diretores participaram do projeto. Bertolucci filmou seu dia a dia de cadeirante nas ruas irregulares do Trastevere.
O melhor de Bertolucci
. Os sonhadores (2003)
Maio de 1968, França. O estudante americano Matthew (Michael Pitt) conhece os gêmeos Isabelle (Eva Green) e Theo (Louis Garrel). O trio partilha não só a paixão pelo cinema, como também o amor e o sexo. É uma espécie de testamento do cineasta para os jovens.
. Beleza roubada (1996)
Ainda que falado em inglês, o filme marca o retorno do diretor à Itália e também a um projeto mais intimista, depois da fase das superproduções iniciada com O último imperador. Depois do suicídio da mãe, a jovem Lucy (Liv Tyler) viaja para a Toscana para tentar se conectar com o passado e acaba descobrindo o amor.
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Os nove Oscars consagram a carreira do cineasta, que resgata a figura de Puyi para mostrar a passagem da China do feudalismo para o mundo moderno. O último imperador da China, que subiu ao trono antes dos 3 anos, morreu como jardineiro em Pequim.
. A tragédia de um homem ridículo (1981)
Ugo Tognazzi é Primo Spaggiari, industrial cujo filho é raptado por terroristas. Só que há dois poréns: o homem de negócios está à beira da falência; sequestrado e sequestradores são cúmplices. Foi o último filme italiano de Bertolucci antes de se dedicar a grandes produções internacionais.
. 1900 (1976)
O épico de pouco mais de cinco horas de duração acompanha 45 anos da vida de dois amigos: o filho de um camponês (Gérard Depardieu) e um herdeiro de terras (Robert De Niro). O drama faz retrospectiva histórica da Itália do início do século 20 ao fim da Segunda Guerra.
. Último tango em Paris (1972)
Responsável por lançar Bertolucci internacionalmente, o filme mostra um controverso olhar sobre os jogos de sedução e perversidade entre dois estranhos, interpretados por Marlon Brando e Maria Schneider. Foi censurado em vários países. No Brasil, o longa só foi liberado em 1979.
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Baseado no romance de Alberto Moravia, acompanha o jovem Marcello (Jean Louis Trintgnant). Ao aderir ao fascismo, ele é incumbido de eliminar, em Paris, um professor que fugiu da Itália após o início do regime de Mussolini.
. Antes da revolução (1964)
Filme inspirado pela Nouvelle Vague, acompanha o jovem intelectual Fabrizio (Francesco Barilli), alter ego de Bertolucci. A repulsa ao modo de vida burguês o leva a terminar o noivado com uma moça de boa família e dar início ao caso com a tia. O tema do incesto se tornou recorrente na obra do cineasta.
Filmografia
1962 – A morte
1964 – Antes da revolução
1966 – Il canale
1967 – La via del petrolio
1968 – Partner
1970 – A estratégia da aranha
1970 – O conformista
1971 – La salute à malata
1972 – Último tango em Paris
1976 – 1900
1979 – La Luna
1981 – A tragédia de um homem ridículo
1984 – L’addio a Enrico Berlinguer
1985 – Cartoline dalla cina
1987 – O último imperador
1989 – 12 registi per 12 città
1990 – O céu que nos protege
1993 – O pequeno buda
1996 – Beleza roubada
1998 – Assédio
2002 – Ten minutes older: The cello
2003 – Os sonhadores
2012 – Eu e você
2013 – Venice 70: Future reloaded
Sem perdão
Antes do movimento #Metoo e do caso Weinstein, Último tango em Paris (1972) e a cena forte de sodomia se tornaram um símbolo da violência sexual no cinema. Maria Schneider, com 19 anos, interpreta a garota que vive tórrida paixão com um viúvo americano de passagem por Paris (Marlon Brando). Duro e mórbido, esse encontro atinge o ápice na cena de sexo não consensual em que o casal usa um tablete de manteiga como lubrificante.
Segundo Maria, nem Brando nem Bertolucci a alertaram. Em entrevista ao Daily Mail em 2007, contou que suas “lágrimas eram verdadeiras” no filme. “Senti-me humilhada e, para ser sincera, tive um pouco a impressão de ser violentada por Marlon e Bertolucci”, declarou ela, que morreu em 2011.
Ao saber da morte da atriz, Bertolucci disse que “teria querido lhe pedir perdão”. “Maria me acusava de ter roubado sua juventude.