Jornal Estado de Minas

CHEIROS

Por que olfato é o sentido mais importante para nossas emoções



Quando começou a pesquisar sobre o impacto do olfato na nossa vida, o cientista Harold McGee não tinha nem ideia de que a maior pandemia pela qual a humanidade passaria em séculos poderia colocar em risco justamente nossa capacidade de sentir cheiros — e, consequentemente, sabores.





Ele, que passou as últimas décadas aprofundando os conhecimentos da relação da comida com a ciência, tornando-se um dos maiores especialistas na química dos alimentos (com pesquisas e livros publicados em diversos países), começou a se questionar como as moléculas que entram pelo nosso nariz poderiam ser tão importantes para entender o mundo à nossa volta.

O cheiro de mar, aquele prazer do café coado pela manhã que domina a casa, o delicioso odor que sai do forno avisando que tem bolo na casa da vó. "Comecei a pensar nisso em 2007, sobre como nos aprofundamos tão pouco sobre um sentido que é capaz de nos transportar para tão boas memórias e sensações", conta.

Algo que a covid só tornou ainda mais relevante, com muitas pessoas a desenvolverem sintomas de anosmia quando acometidas pela doença. "Não poder sentir aromas deixou muita gente abalada. Até porque não sabíamos — e ainda não sabemos, na verdade — os efeitos dessas perdas a médio e longo prazo", afirma.





Ele começou a escrever o livro Nose Dive - A Field Guide to the World's Smells (ainda sem edição em português) após 3 anos, mas que só veio a ser publicado uma década depois. "Há poucas referências bibliográficas sobre o tema. Para ir mais profundamente, precisei pesquisar muito", explica.

Para McGee, é até surpreendente que nossa sociedade moderna (principalmente a ocidental) tenha negligenciado tanto a importância do olfato. "Quando respiramos — algo que temos que fazer muitas vezes por minuto — estamos absorvendo as moléculas do mundo ao nosso redor. Poucos sentidos são mais íntimos que esse", afirma.

Inspirar emoções

Um estudo da Universidade de Utrecht, na Holanda, concluiu que o olfato também é o sentido que desperta mais memórias emocionais — segundo os especialistas, a proximidade entre o centro de processamento de cheiros e regiões que controlam emoções e memórias no cérebro seria a principal razão para essa relação.





"Não a toa, durante a nossa infância, quando experimentamos, por exemplo, o cheiro de comida sendo preparada pela nossa mãe, que é uma pessoa determinante para nossa existência, nosso cérebro registra este momento e esse cheiro vai estar sempre associado com conforto e cuidado, com amor e segurança", explica McGee.


Harold McGee pesquisa a relação da comida com a ciência (foto: Elli Sekine)

De forma inversa, segundo ele, se temos experiências assustadoras ou em que estamos momentaneamente em perigo e há um cheiro predominante no ambiente, esse aroma vai ser um gatilho negativo e senti-lo vai nos causar sempre grande desconforto. "Para mim, que moro na Califórnia, o cheiro de madeira queimando sempre foi muito reconfortante, pois me remetia o calor da lareira nos dias mais frios", conta.

Mas desde que os incêndios passaram a tomar o estado nos últimos anos, esse cheiro ganhou um significado totalmente diferente para o cientista. "Mal posso senti-lo, fico paralisado", desabafa. "Nosso cérebro está constantemente percebendo o que se passa no mundo ao nosso redor, interpretando e fazendo associações com base nas experiências que acumulamos. O olfato é um importante aliado para nossa mente organizá-las", detalha.





Na nossa história evolutiva, os cheiros nos ajudaram a preservar nossa existência ao nos permitir perceber os perigos que podíamos encontrar — fosse em um alimento estragado ou até na presença de um predador e no vazamento de um botijão de gás. Mas com as tecnologias, fomos deixando de lado esse instinto (que por vezes passamos a disfarçar com fragrâncias e perfumes para cobrir os cheiros naturais) e dando mais atenção a outros.

O desenvolvimento da música, das artes, da literatura e até da gastronomia são provas de como outros dos nossos sentidos (como visão, audição e paladar) conquistaram maior importância entre nós. "O olfato ficou como um sentido secundário", afirma.


A perda do olfato pode levar a mudanças significativas na estrutura do cérebro (foto: Gabrielle Lurie/ Getty Images)

Cheiro que nos invade

De forma bem resumida, os cheiros, ele explica, são compostos voláteis que se desprendem das coisas e entram no nosso corpo, acessando nosso cérebro. Quando folheamos um livro, por exemplo, uma variedade de polpa de madeira e fibras de papel se desprendem das páginas para entrar pelas nossas narinas.





Como respirar é um ato fisiológico e, portanto, obrigatório, não podemos evitar sentir o cheiro das coisas — bons e ruins, claro. Mas como também é um ato automático, nem sempre prestamos tanta atenção a esses odores que nos invadem. "Nos atraímos por perfumes e fragrâncias apenas, quando o cheiro, na verdade, é uma chave para entendermos o que está à nossa volta, das relações afetivas aos prazeres da mesa", explica.

Nesse sentido, aliás, o próprio sabor tem nos aromas um componente fundamental para sua percepção. O paladar propriamente dito, é o que que acontece na nossa língua e envolve poucas sensações: doce, azedo, amargo, umami, salgado e assim por diante. Mas não há "gosto" sem levarmos em conta o que se passa no nosso nariz.

"E aí, o número de sensações possíveis é tremendo. São dezenas de milhares de combinações que o cheiro agrega ao gosto, porque ele representa muitas mais possibilidades", ele explica. O café, por exemplo, pode ter 800 moléculas voláteis de aromas diferentes depois de torrado.





"A razão pela qual o cheiro é tão poderoso é que ele é a nossa ponte entre o que está acontecendo em nossas línguas enquanto comemos e o que está no mundo. Nosso cérebro está constantemente comparando o que temos na boca com o que ele sabe sobre o que está lá fora, criando um riquíssimo banco de dados", detalha.

Por isso é que sommeliers, chefs e outros profissionais da alimentação insistem sobre a importância dos aromas. Senti-los mesmo antes de comer pode abrir novas percepções sobre o prato de comida ou o vinho que estamos dispostos a provar.

Aromas "controlados"

Segundo McGee, a recente valorização do olfato começou, entretanto, antes da pandemia. Ele acredita isso é consequência direta dos processos de industrialização e urbanização, que padronizaram cheiros sob o argumento de eles seriam melhores para nós, representando uma melhor higiene e conforto — do odor do desinfetante (sempre entre o pinho e o cítrico) até os cheiros reconfortantes, como o tutti-fruti que nos remete a infância ou a erva doce dos sabonetes com os quais usualmente lavamos as mãos. "Os cheiros 'controlados' nos ofereceram uma sensação de segurança", ele diz.





Mas o resgate de alimentos fermentados (de molhos como o garum a picles) e uma recente apreciação de queijos artesanais e vinhos sem intervenções e com todos os seus aromas naturais são exemplos de como as pessoas estão mais abertas e curiosas sobre os cheiros de verdade — especialmente se forem fortes e pungentes, algo que historicamente aprendemos a cindir.

Para o processo do livro, McGee conta que desenvolveu o seu olfato com a ajuda do tabaco (que não fuma, mas que sempre o intrigou). "Da fumaça às folhas fermentadas, as nuances de aromas são muitas e muito ricas. Quando uma pessoa fuma, existem muitas moléculas compartilhadas, não apenas da fumaça, mas da própria folha usada", analisa.

Para o cientista, tendemos a criar uma melhor relação com o nosso entorno se pudermos interpretá-lo a partir de seus muitos cheiros. A sua dica é prestar atenção nos aromas que nos surpreendem durante o dia todo. "Não tenho dúvida de que, especialmente depois da covid-19, estamos voltando a descobrir a ampla gama de possibilidades aromáticas que podemos desfrutar e o valor que elas têm para nossas emoções", conclui. Prazeres que estão literalmente diante dos nossos narizes.





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