Jornal Estado de Minas

ENVELHECIMENTO

Saber envelhecer: além das marcas do tempo


Ficar velho pode acontecer em qualquer época da vida. A questão do envelhecimento tem muito mais a ver com um marcador interno de experiência de vida, do que propriamente uma questão temporal externa, de calendário, dos anos que se passam. É o que considera a psiquiatra Maria Francisca Mauro. "O ponto principal de se estar velho é quando a pessoa deixa de lado a sua proposta de aprender ou de se responsabilizar por uma vida que lhe dê prazer e envolvimento, em que ela se localiza no seu tempo histórico e também naquilo que contribui para a sua construção de vida e de sentido."




 
Sob a análise de Maria Francisca, talvez hoje seja mais difícil o envelhecimento do ponto de vista subjetivo, pois o contexto da cultura moderna é o do tempo rápido, da não raiz, da não localização, do descarte dos costumes que pode ser perigoso no sentido do respeito às tradições, e da própria ancestralidade, em suas palavras.
 

 
Para a psiquiatra, a idade representa também um constructo da sabedoria, do processo de aprendizado, de uma história que vai além da pele e das marcas temporais, e mesmo do próprio organismo biológico do indivíduo. Então, talvez o que hoje se experimenta quanto ao descarte do que não representa vitalidade, que apenas a juventude é uma fonte de força e de capacidade, pode ser um sinal de desrespeito ou de desligamento dos valores.

ETERNA JUVENTUDE

Muitas pessoas, segundo a especialista, têm a fantasia quanto à eterna juventude no significado estético. Um corpo de 20 anos não é igual ao corpo dos 40, que não é igual ao corpo dos 80 anos e mesmo dos longevos que chegam aos 100 anos. "Porém, a questão da eterna juventude pode sim existir no lugar de encantamento, de uma possibilidade de a pessoa se permitir a ver o avançar da vida não somente como uma caminhada para a morte ou como o encurtamento do período de vida e de possibilidades, mas sim um acúmulo de experiências, aprendizados e trocas", diz Maria Francisca.




 
Para a profissional, a questão do isolamento social dos idosos como grupo de risco, dentro do cenário da pandemia, pode ser vista de duas formas. Primeiro, aquelas famílias que renegaram seus idosos a um isolamento, sem investir neles, que não tiveram uma atitude de cuidado, respeito, proteção e amor. 
 
Por outro lado, aqueles que valorizaram o envelhecer, e tiveram de seus descendentes ou amigos e pessoas próximas, o cuidado, que puderam experimentar o carinho, o acolhimento e o retorno do que fizeram em suas vidas. "São pontos muito importantes para que possamos refletir sobre como cuidamos de quem amamos, dos nossos mais experientes, mais velhos, e como esses nos transmitem o respeito, o amor e a generosidade."


VALORES SIMBÓLICOS

No percurso da pandemia, a psiquiatra constata processos familiares diferentes que traduzem a cadeia de valores simbólicos de cada família. Pelo espectro negativo, por exemplo, famílias que não se importaram se o idoso estava sendo exposto ou oferecido ao sacrifício da indiferença, como se sua vida não tivesse valor ou mesmo que a ordem natural da vida seja que os idosos partam antes por serem mais frágeis e mais vulneráveis. "Quantas vezes já ouvimos que 'estava velho mesmo e precisava morrer'?"
 
Para Maria Francisca, é necessário acabar com a falácia de que os idosos são frágeis, pessoas que precisam ser cuidadas de uma forma que não respeita a sua própria autonomia. É preciso, sim, ela diz, instigar e ver se aquela pessoa precisa ser amparada e cuidada, dentro dos cuidados que se fazem mais necessários, com a própria saúde física, e principalmente com a saúde emocional.




 
"Precisamos respeitar os idosos, os mais experientes, de uma forma que não os transformem em crianças, pois eles não são." Do ponto de vista de Maria Francisca, a velhofobia existe no cenário de uma sociedade que perde a sua própria raiz. "Quando passamos a renegar os nossos idosos, os nossos guardiões de experiências, é porque estamos fracassando enquanto sociedade e pessoas humanas. Pois, se olhamos os nossos mais velhos com desdém ou, até mesmo, como descarte, é porque não aprendemos com a vida", analisa.
 
Para a profissional, abrir mão dos mais velhos demonstra a necessidade de repensar a própria jornada, o próprio valor do que é a família e do que é ser humano. "Se você tem velhofobia, você tem fobia de vida, de história, de motivos, de amor. É uma fobia que pode denunciar um traço dessa sociedade que renega raízes, tradições, que não pratica o respeito e o amor", diz.

TRISTEZA

Foram dois anos totalmente restrita dentro de casa. A pedagoga Nati Assis Martins diz que um sentimento importante nesse período foi a tristeza (foto: Jair Amaral/em/d.a press)
  

A pedagoga Nati Assis Martins, de 69 anos, tem dois filhos e dois netos. Vive com o filho caçula e conta sobre as dificuldades que vivenciou do início da pandemia para cá, da preocupação com o isolamento. Foram dois anos totalmente restrita dentro de casa. Diz que um sentimento importante nesse período foi a tristeza. A tristeza em ficar todo esse tempo sem contato próximo com os netos, a tristeza de não poder abraçar as pessoas queridas, de não poder ir à escola, onde dá aulas para a educação infantil, para crianças de 4 anos.




 
Nati tem pressão alta e asma, e relata ter ficado extremamente assustada com as situações ocasionadas pelo coronavírus. O filho mais velho trazia à sua porta as compras de supermercado, padaria, sacolão, e outras coisas de que precisava, e ela nem chegava perto para receber. "Ficava naquela ânsia de higienizar tudo, tinha álcool para todo lado, ficava sempre de touca, luva, máscara", conta.
 
Também começou a ter queda de cabelo e emagreceu 14 quilos, já que quase não tinha apetite. Desse modo, o aspecto emocional piorou. "Chorava muito", diz. Sobre a vacina, foi resistente. Observando muita coisa falada em depoimentos na internet, ficou insegura e só no último mês de março completou o esquema vacinal com a terceira dose.
 
Um dos apoios que teve foi das professoras de educação física Márcia Roberto e Luciana Cota, que ministram um programa de exercícios on-line para mulheres acima dos 60, chamado Be Strong +. Todos os dias, de segunda a sexta-feira, por meia hora, elas passavam séries de atividades para Nati, para serem feitas com itens encontrados em casa. A escola onde trabalha ficou fechada a maior parte do tempo com a pandemia, e só agora retomou as atividades. Nati foi convidada para voltar a dar aulas, e aceitou, o que tem sido um motivo de satisfação. "Para mim, o coronavírus nos ensinou a ter paciência, a praticar a solidariedade, com as pessoas próximas e a comunidade em geral."





Neuza Guerreiro de Carvalho, de 92 anos, é um exemplo de como conviver sadiamente com tantos transtornos ocasionados pela COVID-19 (foto: Arquivo Pessoal)
  

Neuza Guerreiro de Carvalho tem 92 anos, é bióloga e professora aposentada. Tem dois filhos e quatro netos, e vive sozinha. É um exemplo de como conviver sadiamente com tantos transtornos ocasionados pela COVID-19. Diz que se adaptou bem à pandemia, que para ela não tem nenhuma novidade. "Não me assustou. É um problema que aconteceu agora, como ainda teremos outros. É um reflexo do modo de vida moderno, conforme as mudanças e características da sociedade", diz.

Ela ficou o tempo inteiro em casa, e para tudo o que precisava fazer buscava na internet. Continuou o trabalho em conjunto com a Universidade de São Paulo para pessoas acima dos 60, e manteve as publicações em um blog próprio, além de ser uma leitora voraz. À distância, o filho monitorou seu dia a dia, com três câmeras dispostas em sua casa. "Minha rotina continuou a mesma. Só não mais saía para ir a concertos, exposições, eventos. Foi o que fez mais falta. Mas sobrevivi. Sou resiliente. Aceito tudo sem tanto sofrimento", conta.
 
TRÊS PERGUNTAS PARA...

Michelle Andreata, médica que atua com cuidados paliativos e pneumologia na clínica de atenção home care Saúde no Lar

Michelle Andreata (foto: Rafael França/Divulgação)

1 - Em tempos de pandemia, em que os idosos, por serem grupo de risco, precisaram ficar em casa, com pouco contato com o mundo externo, envelhecer ficou mais difícil?

Com certeza o envelhecer ficou mais difícil nessa pandemia. Isso porque o isolamento social imposto pelas medidas sanitárias, a fim de frear a disseminação de um vírus com alta letalidade, fez com que as doenças mentais, como depressão e ansiedade, aumentassem muito em toda a população. É sabido que a depressão pode ser um dos primeiros sinais do surgimento de demência em idosos, e que o estímulo cerebral gerado por novos aprendizados retarda e até contribui para evitar o surgimento dessas demências. Além disso, o monitoramento das doenças preexistentes nessa população ficou prejudicado. Isso porque muitas consultas foram canceladas devido ao isolamento prolongado, e cirurgias também deixaram de ser prioridade frente ao caos que os hospitais enfrentaram durante muitos meses, por causa dos casos graves gerados pela infecção por COVID-19. Com todo esse atraso no monitoramento, algumas doenças foram se agravando e tornaram-se irreversíveis, prejudicando não só a saúde, como também reduzindo mais bruscamente a qualidade de vida desses idosos. Isso pode não ter gerado grande impacto no número de mortes, mas com certeza impactou na forma como elas têm acontecido, sendo antecedidas por muito mais sofrimento por parte do paciente e de seus familiares.





2 - Como cuidar da saúde mental dos mais velhos durante o isolamento social?

A saúde mental está relacionada com o bem-estar de qualquer pessoa e influi diretamente sobre como vamos encarar uma doença física. Nos idosos isso tem ainda mais relevância, pois eles geralmente acumulam comorbidades (doenças) no decorrer da vida, que têm agravos acelerados quando há quadros de depressão ou ansiedade associados. Para evitar o surgimento do sofrimento mental, é importante incluir os idosos nas atividades simples do dia a dia, especialmente aquelas tidas como novas, como uso do celular em vídeo chamada, ou uso de plataformas de streaming para o entretenimento.Estimular novos aprendizados favorece a curiosidade e estimula diálogos. Isso evita o autoisolamento, que pode contribuir para pensamentos negativos e sensação de incompetência ou incapacidade frente os desafios do dia a dia, culminando em sofrimento mental e depressão.
O convívio social para os idosos tem um papel ainda mais importante, para manter a plasticidade neural ativa, pois os idosos aprendem com seus netos e filhos a mexer na internet, ou qual música é novidade. Esse aprendizado os tira da zona de conforto, mantendo seus neurônios ativos e evitando ou retardando sintomas de depressão e demência.

3 - O que é velhofobia? Acha que isso aumentou em tempos de pandemia?

Velhofobia é o medo de envelhecer, que aumentou significativamente durante a pandemia. Em uma sociedade em que a beleza física está associada a juventude e saúde, é de se esperar que as pessoas tenham medo de envelhecer, haja visto que o Brasil é considerado campeão em número de procedimentos estéticos. Contudo, esses procedimentos podem ser arriscados, quando realizados sem o acompanhamento adequado da saúde global, podendo evoluir com graves complicações à saúde, como tromboembolismos, em casos de cirurgias, e deformações, em casos de procedimentos injetáveis, contribuindo para redução da qualidade de vida dos pacientes. O medo de envelhecer está associado também ao ageísmo, que é o preconceito com as pessoas idosas, com atitudes de desprezo ou o tratamento do idoso como um ser invisível, o que piora o adoecimento mental dessa população. Por isso é importante incluir os idosos em todas as atividades, respeitando suas diferenças e limites, para que o envelhecer se torne mais natural e saudável para todas as gerações.