Jornal Estado de Minas

COMPORTAMENTO

Escrita afetiva e autoescrita: poder transformador e de descobertas



Nem sempre a catarse, a liberação de emoções, sentimentos e afetos reprimidos de forma explícita, oral, é a melhor escolha na busca de alívio às dores da vida e de redescobertas. Muitas vezes, o barulho do silêncio encontra na palavra escrita mais potência para aquietar a alma e aconchegar o viver.



Seja como recurso terapêutico, por meio da autoescrita, ou utilizada como ferramenta criativa ou afetiva, a certeza é que o poder da palavra escrita é transformador para quem se dispõe a se revelar e se enxergar escrevendo.

Enxergar-se por meio da escrita é uma experiência de autoencontro. Uma forma de aumentar a imunidade ao materializar o que passa pela mente, sem se julgar.

Ao colocar os sentimentos no papel (ou na tela, em tempos digitais), o que não é tarefa fácil, abre-se um canal de reflexão diante das aflições, medos, inseguranças, ansiedade, rejeição e tudo mais que possa estar impedindo você de viver com mais leveza, com menos dor.

As ferramentas são distintas, as propostas diferentes, mas o ato de escrever é poderoso para quem deseja uma existência mais tranquila. E para quem tem dificuldade de externalizar oralmente o que passa frente ao outro, a escrita é uma ferramenta para mapear os sentimentos e chegar a respostas (ou mais perguntas, também fundamentais) para uma vivência com mais sentido.







Para Rafaela Baião, de 32 anos, jornalista que hoje atua como especialista em conteúdo em uma empresa do mercado financeiro, a escrita sempre esteve presente. “Escrever é algo de que gosto de fazer desde bem nova e colocar no papel o que estou sentindo é um excelente refúgio para alguém como eu, que, apesar de saber me expressar bem, tenho muita dificuldade de falar sobre o que sinto. Além disso, me formei em jornalismo e a escrita também faz, há mais de uma década, parte do meu dia a dia profissional.”

Rafaela conta que seus textos sempre ficaram reservados aos seus cadernos pessoais, arquivos no computador ou às cartas e aos bilhetes que sempre teve o hábito de escrever para as pessoas que ela ama.

“Publicar meus textos nunca foi algo que passou pela minha cabeça, porque eu sempre gostei de escrever sobre mim, sobre o que eu penso, sobre o que eu vejo, sobre pessoas importantes para mim — e sempre achei que isso não fosse interessar ninguém.”

Segundo ela, essa chave virou quando passou a acompanhar mais de perto o trabalho da Ana Holanda (jornalista e escritora), que é, atualmente, sua principal referência em escrita.

“A Ana fala da escrita como um caminho de autoconhecimento e como uma ferramenta muito eficaz para a gente lidar com o que sente — e esse é exatamente o lugar da escrita para mim. O livro 'Como se encontrar na escrita', de autoria dela, e o curso escrita criativa e afetuosa, ministrado por ela, foram um divisor de águas e me deram coragem para enxergar a escrita com outros olhos.”





EU VEJO UMA HISTÓRIA


(foto: Kelly Sikkema/Unsplash)


E foi assim que Rafaela Baião decidiu criar um perfil no Instagram para publicar textos da sua autoria. “É verdade que a publicação dos meus textos nunca esteve nos meus planos, mas a criação do perfil do Eu vejo uma história (https://www.instagram.com/euvejoumahistoria/) foi uma forma de fortalecer a minha relação com a escrita e comigo mesma. É um projeto pessoal, pequeno e sem grandes pretensões, mas que me ajuda muito a existir neste mundo de um jeito que faça sentido para mim”, explica.

Rafaela revela que há uma frase da escritora americana, Flannery O'Connor que ela gosta muito e que traduz o papel da escrita em sua vida.

“'Eu escrevo porque não sei o que penso até ler o que eu digo'. Ou seja, escrever não é só uma forma de compartilhar o que eu penso e o que eu sinto. É muito mais do que isso! É uma prática para me ajudar a me entender, a me ouvir e a lidar melhor com meus pensamentos e sentimentos. Antes de ser para o outro, a escrita precisa ser para mim e esse tem sido um exercício diário há muitos anos. No fim das contas, a escrita tem muito menos a ver com o que eu faço e muito mais a ver com o que eu sou — e acho essa uma forma muito bonita de olhar para uma prática tão cotidiana como escrever.”

A prática de traduzir o que se sente em palavras, que existe desde a filosofia antiga – a escrita de si – é importante ferramenta da narrativa contemporânea. Acessível não só para quem sabe escrever, mas para todos que desejam se expressar por meio da escrita.



Especialistas que atuam com a palavra escrita como meio para ajudar as pessoas em suas descobertas e como pode ser uma forma de cuidar da saúde mental, ainda mais diante do enfrentamento da pandemia da COVID-19, destacam o poder da escrita.

Em período de isolamento social, papel e caneta ou, se preferir, teclados e telas são companhias que podem ajudar a viver este tempo com menos solidão, com mais solitude, como dias de descobertas, de buscas internas, com mais compaixão e empatia.

A jornalista e escritora Ana Holanda exalta a escrita que nasce dentro das pessoas e os caminhos que ela percorre até chegar ao outro: “As palavras cheias de alma nos carregam. Quando escrevemos um texto, ele deixa de lhe pertencer e ganha o mundo. Quando uma pessoa o lê e se identifica com ele, com as palavras, o tema ou a história, aquele texto, aquelas palavras passam a se manter vivos no outro. É uma continuidade de vida, da nossa vida, no outro. As palavras não existem para ocupar espaços em branco no papel. Mas dar sentido. De vida. E por isso não devemos desperdiçá-las.”

audima