Jornal Estado de Minas

SAÚDE

Alcoolismo: quando o consumo de bebidas para relaxar se transforma em vício


Você já sentiu que deveria diminuir a quantidade de álcool ingerida? As pessoas já o irritaram quando o criticaram pelo excesso de consumo alcoólico? Já se sentiu mal ou culpado a respeito desse hábito? Já tomou bebida alcoólica pela manhã para “aquecer” os nervos ou se livrar de uma ressaca? 

Se a sua resposta é sim para algumas dessas perguntas, é possível que haja alguma relação emocional ou física de vício ou problemas relacionados ao consumo de álcool. É o que indica o Ministério da Saúde.



Porém, segundo a entidade, é muito importante que a assistência médica seja procurada imediatamente, a fim de discutir as respostas para essas perguntas e traçar um parâmetro em torno do diagnóstico de alcoolismo ou não.  

Só assim, a melhor estratégia de tratamento poderá ser indicada aos que realmente sofrem com a dependência alcóolica, considerada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como doença.

Para Rosângela Teixeira, médica clínica e hepatologista do Hospital Felício Rocho, o alcoolismo constitui, ainda, um sério problema de saúde pública, haja vista a alta incidência de consumo e das taxas de mortalidade em decorrência do vício pelo álcool.  

De acordo com a OMS, em todo o mundo, cerca de 3 milhões de pessoas morrem por ano em razão do uso nocivo de álcool, representando 5,3% do total de mortes no globo. Na faixa etária entre 20 e 39 anos, aproximadamente 13,5% do total de mortes são atribuíveis ao álcool, segundo os dados da entidade. No Brasil, a prevalência de dependência alcoólica é de 12,3%, com maior ocorrência em pessoas do sexo masculino. 

“O consumo de bebidas alcoólicas é uma prática muito antiga na história da humanidade, impregnada de múltiplos significados e rituais, frequentemente assentado em regras de conveniência social mediadas por disposições simbólicas, restritivas e permissivas. Já o termo alcoolismo caracteriza-se pela vontade incontrolável de beber, pela perda do controle sobre a quantidade que se bebe, pela incapacidade de parar a ingestão do álcool e pela tolerância progressiva ao álcool, o que requer ingestão progressivamente maior da substância para se obter seus efeitos”, aponta Rosângela Teixeira. 





Além disso, ela destaca que o fácil acesso e o baixo custo tornam o álcool uma das drogas mais utilizadas e principal causadora de danos às famílias e à sociedade, fazendo com que a preocupação em torno do álcool não se resuma apenas a embriaguez, mas também a demais problemas que podem surgir no âmbito social e pessoal. 

PORTA DE ENTRADA 


Tasso Amós, psiquiatra da Clínica Mangabeiras, pontua que o consumo de álcool tende a surgir como uma válvula de escape em momentos emocionalmente difíceis e aos poucos avançar para um quadro de dependência.

“Muitas pessoas em sofrimento psicológico buscam alívio no álcool, o que é potencialmente perigoso mesmo a curto prazo, já que a substância provoca descontrole emocional, aflora sentimentos de raiva e tristeza e, como consequência, potencializa o comportamento autoagressivo”, completa.




 
 

A partir de então, com a dependência instalada, promovendo o consumo excessivo e crônico de bebidas alcoólicas, há uma alteração dos circuitos cerebrais do dependente, o que pode e tende a persistir mesmo após um período de desintoxicação. É o que explica os quadros de recaída e desejo intenso de beber quando existem estímulos, aponta Tasso Amós. 

(foto: Luciana Rabelo/Divulgação)
“O alcoolismo se instala normalmente de maneira insidiosa e tem curso flutuante, com períodos de instabilidade gerados por abuso importante do álcool seguidos por fases de maior controle, quando a pessoa abandona ou reduz o consumo. Com o passar dos anos, o desempenho geral do indivíduo começa a declinar, algumas atividades importantes são deixadas de lado e progressivamente a substância ocupa espaço e tempo na vida da pessoa em adoecimento, seja para garantir o consumo ou para se recuperar dos seus efeitos tóxicos.” 

Em alguns casos, o vício se torna tão grande que a ingestão de bebidas alcoólicas é mantida, mesmo havendo risco de morte e consciência a respeito dos danos físicos e psicológicos causados pelo álcool. 

Outros fatores capazes de influenciar o alcoolismo, além do emocional humano, têm relação com a genética, comportamentos pessoais e sociais e aspectos ambientais – desenvolvimento econômico, cultura, disponibilidade de álcool e abrangência e níveis de implementação e execução das políticas sobre álcool.



Não à toa, mais de 70% de toda a população brasileira já fez uso de álcool ao longo da vida, 54,3% no caso de adolescentes, diz o Ministério da Saúde. 

CORPO E MENTE SOFREM 


A médica Rosângela Teixeira explica que o álcool encontrado nas bebidas é o etanol, substância resultante da fermentação de elementos naturais.

“O álcool da aguardente vem da fermentação da cana-de-açúcar, e o da cerveja, da fermentação da cevada, por exemplo. Quando ingerido, o etanol é digerido no estômago e absorvido no intestino, caindo na corrente sanguínea e atingindo demais órgãos. Portanto, vale ressaltar que o etanol é muito tóxico para diversos órgãos quando utilizado por tempo prolongado.” 

Justamente por isso, os danos podem ser graves. Segundo a médica clínica, no sistema nervoso, por exemplo, o etanol contribui para o desenvolvimento de demência e neuropatias com déficits sensitivos e motores. A força muscular também sofre e pode ser reduzida progressivamente, assim como a toxicidade cardíaca pode causar miocardite e arritmias. Há, ainda, a ocorrência de quadros de gastrite, úlcera e pancreatite aguda e/ou crônica.  
 
Outro potencial risco associado é o aparecimento de tumores e o desenvolvimento de cânceres, principalmente no trato intestinal, bexiga e próstata.

“No fígado, a toxicidade pelo etanol resulta em graves consequências. A doença hepática associada ao álcool varia desde a esteatose hepática, ou acúmulo de gordura no fígado, às formas mais avançadas, incluindo hepatite alcoólica e a cirrose com suas sérias complicações, como o carcinoma hepatocelular.” 

“O alcoolismo, inclusive, é uma das principais causas de doença hepática em todo o mundo, seja como fator isolado ou cofator na progressão da hepatite viral crônica, doença hepática gordurosa não alcoólica, sobrecarga de ferro e de outras doenças hepáticas. A progressão da hepatopatia para estágios mais avançados depende do uso contínuo de álcool e da associação com outros fatores de risco, incluindo sexo feminino, suscetibilidade genética, dieta e outras comorbidades”, completa.




 
 

Para além dos danos físicos, a mente também sofre, e muito. Isso porque, conforme elucidado pelo psiquiatra Tasso Amós, o consumo crônico do álcool pode promover ou agravar diversos sintomas neuropsiquiátricos, como depressão, ansiedade, insônia e prejuízos no raciocínio e memória. O alcoolista sofre, também, de exclusão social, baixa autoestima, baixa autoconfiança e perda de perspectivas, motivações e projetos de vida.  

“Trata-se de um adoecimento altamente desagregador no âmbito familiar e social. Assim, mais que uma doença do indivíduo, é uma doença social”, descreve Rosângela Teixeira. 

Ainda, a ingestão excessiva de álcool tende a provocar danos diretos à saúde de outras pessoas, sejam elas familiares, conhecidas, amigas ou desconhecidas. E isso porque, além da violência exacerbada resultante do uso excessivo de álcool, de acordo com o Relatório Global sobre Álcool e Saúde da Organização Mundial da Saúde (OMS), publicado no ano passado, em 2016, o álcool esteve associado a 36,7% dos acidentes de trânsito envolvendo homens e 23% envolvendo mulheres no Brasil. 

O QUE FAZER? 


“O alcoolismo carrega um estigma significativo na sociedade e os transtornos são evidentes tanto nas famílias quanto nas relações sociais. Assim, a pessoa dependente do álcool prejudica a sua própria vida e afeta a família, amigos e colegas de trabalho. Portanto, é também um sério problema social e o tratamento é necessário em todos os casos”, afirma a médica Rosângela Teixeira. 





(foto: Felício Rocho/Divulgação)
Porém, ela destaca não ser fácil tratar o alcoolista porque, assim como os demais vícios, a taxa de recaída é muito alta, em torno de 50% nos primeiros três meses de tratamento. Além disso, é frequente o paciente recusar qualquer forma de tratamento por subestimar a dependência ou negar sua posição enquanto alcoolista.

“O primeiro passo depende do paciente. Ele precisa se reconhecer alcoolista e querer se tratar. O envolvimento e a compreensão da família nesse momento são fundamentais.” 

“A partir disso, entra o fundamento terapêutico, que consiste em auxiliar o alcoolista a reconstruir sua vida sem o uso do álcool, por meio da abstinência, após ser constatado o consumo caracterizado como dependência. Trata-se, portanto, de um processo terapêutico longo e complexo. É importante, também, vincular o paciente a um serviço para dependentes de álcool que disponha de abordagens multidisciplinares coordenadas, com base nas diversas modalidades terapêuticas”, aponta. 

O alcoolista, então, passa por um processo de cura, com a desintoxicação do álcool, acompanhamento individual, avaliação psiquiátrica, terapia cognitivo-comportamental e de aversão, abordagem de abstinência por meio de escalas específicas, psicoterapia de grupo e orientação familiar.



Em alguns casos, pode se fazer necessária a intervenção farmacológica, que tende a variar de acordo com cada paciente e inclui o uso de sedativos, vitaminas e medicamentos. Já quando há a instalação de quadros mais graves, a internação hospitalar pode ser a melhor opção. 
 
 

Nesse cenário, o psiquiatra Tasso Amós ressalta a importância do apoio familiar e de pessoas próximas, ou mesmo de quem passa pela mesma situação. “Quanto maior o nosso repertório de amizades e atividades construtivas – leitura, esportes, desenvolvimento de habilidades em geral –, maior a concorrência para o álcool e qualquer outra substância potencialmente aditiva. O nosso instinto é de buscar recompensa o tempo todo, cabe a cada pessoa estruturar roteiros saudáveis para saciar a sua mente, o que evitaria a dependência do álcool ou seria parte de uma estratégia para se livrar dela.” 

“Portanto, quem está próximo deve oferecer ajuda, já que o pedido espontâneo costuma demorar ou nem mesmo acontecer. As recaídas são a regra, por isso o esforço para evitá-las deve ser ininterrupto, provavelmente por muitos anos. Não critique, não condene, isso normalmente afasta o dependente socialmente e do próprio tratamento. Grupos terapêuticos também podem ajudar bastante, pois são ambientes para compartilhar experiências, de suporte mútuo e com potencial motivacional”, diz. 

A DOR DO ALCOOLISMO 


O pedreiro L.B., de 46 anos, que não quis se identificar, relata que não se recorda ao certo quando se deparou com o alcoolismo. Ele sempre bebeu muito e, mesmo com o alerta de amigos e familiares, não se reconhecia como um alcoolista. A frase “quando eu quiser, eu paro” era quase um mantra em resposta aos questionamentos sobre a dependência. Foi, então, que pessoas começaram a se afastar. O convívio social já não era o mesmo. 





O desempenho no trabalho caiu. E sua vida pessoal também já dava indícios de sofrer com a dor do alcoolismo para além dos danos físicos. “Eu bebia porque me sentia mais leve e feliz. Era como uma válvula de escape. Bebia e sentia que tudo estava bem. Mas, aos poucos, com o afastamento e os danos, comecei a perceber que precisava parar, eu precisava de ajuda”, conta. 

A “gota d’água”, segundo L.B., foi quando ele passou mal na rua, após tanto beber, e desmaiou, precisando ser levado ao hospital. “Lá, identificaram uma taxa alta de álcool no meu sangue, a qual não me recordo. Comecei, então, a frequentar o AA (Alcoólicos Anônimos) e um outro grupo de ex-dependentes químicos de uma igreja do meu bairro. Aos poucos, consegui largar a dependência e me reerguer. Hoje, sou um novo homem”, diz o pedreiro. 

O Dia Nacional de Combate ao Alcoolismo é celebrado nesta quinta-feira (18). A data é comemorada como forma de conscientizar os brasileiros sobre o consumo excessivo de álcool e os males que a prática pode ocasionar. Caso precise de ajuda, acesse o site oficial dos Alcoólicos Anônimos (AA)

*Estagiária sob a supervisão da editora Teresa Caram 

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