Natural de Itajubá, Sudoeste de Minas, Nara Torres, de 34 anos, é um exemplo de como a nova geração de mulheres tem experenciado o feminismo e se engajado na demanda do século 21. Ela é uma das fundadoras da fanfarra Sagrada Profana, grupo de percussão que conta com cerca de 200 integrantes e desfila no carnaval de rua de BH, convidando as participantes a exercer a total liberdade de expressão, o empoderamento. Não por acaso, muitas delas se sentem à vontade para desnudar os seios, derrubando estereótipos sobre a sexualidade e também padrões de beleza impostos pela sociedade patriarcal.
“Um dos lemas do feminismo é ‘meu corpo, minhas regras’. Penso que cada pessoa pode e deve se vestir ou se despir como bem entender, e uma mulher que está mostrando partes do seu corpo deve ser respeitada, pois isso não significa um convite. Por que os homens podem e nós não podemos? Onde está a maldade, onde está a malícia, senão no olhar de quem vê? Além disso, questionamos muito os padrões de corpos impostos pela indústria da mídia, que tanto sofrimento geram. Assim, cada participante do bloco tem a liberdade de questionar alguns paradigmas da sociedade como bem entender”, justifica.
Residente em BH desde os 18 anos, quando chegou a fim de cursar a faculdade de comunicação social, Nara conceitua o feminismo como busca individual e coletiva pela igualdade de direitos e oportunidades entre homens e mulheres. Acredita que o tema exige um trabalho de reverter um processo histórico que subestima as potencialidades das mulheres e as coloca culturalmente em posição de inferioridade e submissão. E demanda um processo de clareza e emancipação que propõe enxergar que as mulheres são aptas e capazes de ter uma vida livre e plena em todos os aspectos da existência.
PRIMAVERA FEMINISTA Ela conta que, desde 2015/2016, quando as hashtags #meuamigosecreto e #meuprimeiroassedio foram usadas na rede social Facebook, despertou-se definitivamente para a causa e passou a aplicá-las na própria vida, especialmente nos campos do trabalho e do amor.
Uma das iniciativas foi justamente fundar a fanfarra. “Já participei de vários grupos e percebia que a presença feminina ainda é muito menor do que a presença masculina na cena, além de restrita a alguns papéis específicos de atuação. Sob efeito da chamada ‘primavera feminista’, senti que eu poderia contribuir na prática. A primeira ação foi abrir uma oficina de percussão voltada para mulheres iniciantes, com o intuito de desmistificar o fazer musical e trazer mensagens de empoderamento para mulheres que tinham o desejo de tocar, mas não se sentiam aptas e/ou acolhidas. Hoje, temos várias vertentes da Sagrada Profana: oficinas de percussão, sopros e dança, um bloco de carnaval, uma banda, uma festa, um projeto de debates e uma rede que envolve diretamente cerca de 200 mulheres.”
Nara conta com a ajuda de outras mulheres na condução das ações da fanfarra, em especial de Natália Coimbra (arranjadora e trombonista) e de Ana Cecília Assis (produtora), e conta que as bandeiras do grupo são o amor e a arte. “Interessa a possibilidade de fazermos uma revolução amorosa e poética, do respeito a todas as mulheres do mundo, do empoderamento feminino, do acolhimento às mulheres que sofrem abusos de todos os tipos.
Quanto ao papel do homem nesse processo, Nara destaca: “O papel masculino é apoiar o movimento e trazer para a prática cotidiana as ideias que o feminismo inspira. Apoiar as mulheres da sua vida. Não agir como se a mãe, a irmã, a companheira, a colega de trabalho fossem suas funcionárias. Dividir de fato tarefas domésticas, os cuidados com filhos. Conversar de igual para igual com as mulheres no trabalho. O homem contemporâneo (e a mulher também) está sendo convidado (para não dizer obrigado) a desconstruir uma série de comportamentos e crenças que a nossa sociedade – tão machista – nos ensina. Esse processo é custoso e doloroso, mas com abertura e diálogo podemos avançar como sociedade”.
CERVEJARIA Até mesmo em ações de negócios há espaço para defender e divulgar a agenda feminista, o que comprova que o movimento caminha e se espalha mesmo em redes e diferentes conexões. Exemplo é a dupla Liliam Telles, engenheira florestal, e Thayane Meireles, estudante de fisioterapia, criadoras da marca de cerveja artesanal Libertária.
Com a Libertária, elas querem, sim, gerar renda. Mas também difundir um propósito de vida: “Questionamos os padrões sociais que impõem um papel à mulher na sociedade, vinculado à ideia de dependência em relação ao homem, de fragilidade, docilidade e subordinação. Afirmamos que somos diversas e produzimos uma cerveja que considera a experiência feminina com os diferentes sabores, e desmistifica o estereótipo de que mulher é frágil e gosta de cerveja leve”, declara Liliam.
“Esperamos que a Libertária seja uma forma irreverente de chamar a atenção das mulheres para a necessidade de construirmos nossa autonomia, de nos fortalecermos para inspirar um mundo baseado nos princípios da igualdade, da justiça e da solidariedade”, completa a sócia, Thayane.
Sugestões de leitura que tratam sobre o tema
n O feminismo é feminino? A inexistência da Mulher e a subversão da identidade
Maíra Marcondes Moreira
(Annablume Editora)
n Feminismo em comum, para todas, todes e todos
Márcia Tiburi (Editora Rosa dos Tempos)
n O segundo sexo
Simone de Beauvoir
(Editora Nova Fronteira)
n História da Sexualidade
Michel Foucault
n Problemas de gênero: feminismo
e subversão da identidade
Judith Butler
Entrevista / Maíra Marcondes Moreira - psicóloga/psicanalista e mestre em psicologia pela ufmg
Autora do livro O feminismo é feminino? A inexistência da mulher e a subversão da identidade (AnnaBlume Editora, 204 páginas), Maíra Marcondes Moreira, psicóloga/psicanalista e mestre em psicologia pela UFMG, explica que a obra propõe um diálogo entre a psicanálise, os estudos feministas e a teoria queer. “Acredito que este livro possa ser interessante para a academia e militância feminista queer e para os interessados em formas contemporâneas de fazer política.” Confira, a seguir, o que ela pensa sobre alguns aspectos do feminismo contemporâneo.
Como você define o feminismo?
No meu livro, defino feminismo em termos gerais como a luta pela igualdade de gênero e contra a opressão às mulheres. O feminismo é tanto um movimento político quanto um campo teórico que visa possibilidades de existência menos violentas para mulheres, para as minorias e para a sociedade como um todo. Ou seja, só existe enquanto prática coletiva que visa mudanças coletivas e que é contrário a todo tipo de dominação.
Quais são os principais símbolos e as principais vertentes hoje?
Temos diversas vertentes feministas. Atualmente, o feminismo negro, pós-colonial, interseccional, decolonial e queer podem ser considerados os de maior influência no contexto acadêmico, mesmo tendo surgido fora da academia. Mas há vertentes que ganharam maior espaço nas redes sociais, como o feminismo radical e o feminismo liberal. Bell Hooks, Angela Davis, Spyvak, Paul Beatriz Preciado e Judith Butler são alguns dos grandes nomes do feminismo contemporâneo.
Em que medida e em que pontos o feminismo está e se faz presente na vida da mulher contemporânea?
O feminismo não é um estilo de vida. Ainda assim, podemos dizer que todas as mulheres se beneficiam dele, mesmo as que se dizem antifeministas têm uma dívida com a luta de mulheres que as antecederam por essas terem conquistado o direito ao voto, ao divórcio, à universidade e ao espaço público.
Por fim, em que medida a agenda e o exemplo de feministas que fizeram história contribuíram e têm contribuído para uma realidade diferente?
Acredito que toda uma nova geração de mulheres irá crescer com conteúdos feministas mais acessíveis e terá um contato muito mais precoce com o feminismo e sua importância. No contexto escolar, por exemplo, se o país continuar a se desenvolver em moldes progressistas, será muito interessante o resgate histórico de mulheres e de ações de mulheres que impactaram sua época e, por consequência, a nossa. Há toda uma geração que já tem mais acesso a quem foram as grandes mulheres na história, na ciência, nas artes, na filosofia, nas revoluções e na política. Isso, certamente, cria novas possibilidades para o que se entende como feminino e sobre o lugar da mulher na sociedade..