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Choro por ti, Mãe Terra

É escrevendo que denuncio a devastação interior das pessoas, a falta de cuidado com o outro


postado em 12/05/2019 05:05

Abro a janela neste domingo e penso que gostaria de fazer um tributo à Mãe Terra. Em nome de todas as mães biológicas, deixo de lado as comemorações. Tenho que parar de festejar, para homenagear a mãe de todos que vivem neste planeta. A mãe maltratada, violentada, desrespeitada, devastada pelos filhos de todas as nações – brancos, negros, pardos, amarelos, de todas as cores e de todos os lugares. Se não for possível um minuto, peço pelo menos meio minuto de silêncio em nome da Mãe Natureza, que está sangrando e chora, mas que ninguém escuta nem vê os gritos, as lágrimas e o sangue escorrer pela terra. Ou fingem que não estão vendo, mesmo diante dos relatórios internacionais de 1,8 mil páginas que dizem: “Estamos ferrados, dando tiro no próprio pé, o que pode levar à destruição da própria civilização”.
Pelo menos meio minuto de silêncio para pensar sobre as revelações do maior inventário da biodiversidade já feito, “de que um milhão de espécies animais e vegetais estão em vias de extinção por causa do ser humano. De que ecossistemas e populações selvagens estão diminuindo a uma velocidade nunca antes vista no mundo todo – e a ganância humana é que impulsiona essa destruição. De que humanos são 0,01% da vida no planeta, mas já destruíram 83% dos mamíferos selvagens”.
Do meu front na Serra do Cipó, lugar que é considerado um paraíso, vejo lixo espalhado por todos os lados, vejo fumaça tóxica vinda do fogo no meio da mata. Todo dia, a prática de queimar folhas, grama, lixo e restos é ativada, apesar de ser crime ambiental. Aliás, hoje ninguém sabe mais nem se vai ter futuro nesta sociedade violenta, que está dando voltas em torno do próprio rabo como um cão. Perdoai-os? Não, pois eles sabem e teimam em fazer do mesmo jeito.
Penso que o Dia das Mães espontaneamente leva até o filho único dela que, certa vez, arrumou a mochila, tomou banho, aprontou e se despediu para viajar. Antes de sair, a mãe deixou o computador, olhou a camisa que o filho acabara de vestir e observou: “Você vai viajar com essa camisa toda amarrotada?” Ele respondeu que sim. Que a mãe, ao se levantar de manhã, em vez de preparar o café, arrumar a casa, passar roupa ou pensar no almoço escreve crônica.
Desculpe-me, filho, mas antes de você nascer eu já era jornalista e escritora. Não aprendi serviços domésticos, nem fiz curso de culinária, corte e costura. Desculpe-me, filho, mas você vai ter que passar as próprias camisas, porque nem ensinar essa tarefa eu sei: é uma missão quase impossível para uma mãe que começou a trabalhar cedo e batalhou para dar a você uma educação que parece estranha agora neste país insano. Hoje, filho, sou essa mulher partida, dividida, que acorda e vai escrever crônicas em vez de preparar bolos. Desculpe-me, mas desde o colégio eu gostava de escrever, me emocionava mais com palavras do que com panelas.
Nunca prometi viver entre quatro paredes preparando pratos saborosos, mas você herdou o caderno de receitas de sua avó para que pudesse fazer a própria alquimia. Viu como foi bom? Hoje, você cozinha tão bem! Prefiro a sua comida à minha. Apresentei a você, filho, as minhas fontes preciosas, além da cozinha de sua avó. A culinária viva, do doutor Alberto Peribanez Gonzalez, que escreve livros, com títulos assim: Lugar de médico é na cozinha e Cirurgia verde. Você, filho, teve a chance de aprender com ele a fazer suco verde e caldeirada de frutos do mato.
Apesar dos retrocessos, com mais de 144 agrotóxicos liberados recentemente para envenenar a terra, apresentei a você, filho, antes de toda essa tragédia anunciada, desde as feiras de orgânicos e os restaurantes de comida natural, até as mil e uma ervas, a construção sustentável, as qualidades do bambu na casa que um dia você vai construir. Apresentei a você o monge RyotanTokuda, a comida dos mosteiros zen budistas, a meditação, a imersão na consciência e o Calendário Maia de 28 dias. Apresentei a você, filho, o mundo do futuro que eu imaginava melhor do que o meu.
Ajudei você a conquistar um lugar no século 21, onde os homens podem rir e chorar, cozinhar, cuidar dos filhos, ser parceiros das mulheres. Desculpe-me, filho, se o incentivei a fazer curso de sociologia, a gostar de filosofia, se o ensinei a pensar, a ter conhecimento, se não tive tempo de deixar a casa tão limpa. Mas ensinei a você a aceitar as diferenças, a respeitar as mulheres, os negros, os índios, o planeta onde mora. Ensinei a você os caminhos da espiritualidade e do sagrado que há em cada um de nós. Desculpe-me, filho, se não eduquei você para o mundo de hoje, cada dia mais tresloucado e incompreensível.
Nunca prometi dar a você a lua, mas o ensinei a ter olhos para vê-la e admirá-la, para vasculhar o universo e conhecer os astros e as constelações. Desculpe-me se ensinei a você o mais difícil dos caminhos – o da alma. Desculpe-me se o prendi nas correntes da poesia e da emoção. Se joguei você na arena da esperança e não da competitividade e do lucro. Desculpe-me, filho, se falei para você sobre cachoeira, mar, permacultura e ecovila. Se fiz você sonhar com um quintal de ervas perfumadas e comestíveis, em fazer o próprio pão. Se apresentei a você o cajado da sabedoria. Se você foi com Manche Maquehu, um índio Mapuche, conhecer o Chile e os segredos ancestrais. Desculpe-me por gostar de vinho e de flores, de incenso e amizade. De acupuntura e massagem. Desculpe-me por ser liberal em excesso, de não colocar você em uma forma de bolo. Desculpe-me se eu desandei, se o bolo embolou.
Desculpe-me se houve desvios no caminho, se as encruzilhadas são muitas. Desculpe-me se não tenho limites nem verdades absolutas. Nunca prometi a você o paraíso, porque também tenho meus desertos. Todo dia, tenho que retirar os galhos secos do meu ser, a aridez da vida neste planeta. Mas é escrevendo que denuncio a devastação interior das pessoas, a falta de cuidado com o outro. Gostaria de deixar de herança para você o planeta, o barulho do vento e do mar, as florestas ainda não devastadas, rios vivos e não assassinados, a gratuidade da natureza, as nuvens e o cheiro de mato que você tanto gosta.
Prometo que vou estar aqui quando você precisar, quando chorar de dor ou quiser compartilhar os seus encantos e desencantos. Como herança, deixo-lhe uma vida semeada, cultivada com frutos e flores, girassóis e cactus, abelhas e mel, rosas e espinhos, naufrágios e tempestades, mas também a calmaria e a inquietação.
Impossível? Não desanime, porque você pode lutar para mudar esse rumo sinistro que a vida no planeta está tomando. Saiba que estarei sempre ao alcance do seu coração, quando tudo for incerto. Não deixe que matem os sonhos. E, por favor, nessas horas, não rasteje, voe alto. Olhe de cima e veja que a Terra é azul. Não tem muro nem grade nem parede ou porta. E aprenda com os índios que você tanto ama. Há três pedras em uma aldeia. Uma grande, uma média e uma pequena. A menor é que ilumina tudo. Continue a ser estrela, mesmo quando houver treva.

* Déa Januzzi escreve esta coluna quinzenalmente


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