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Praça da Misericórdia


postado em 14/04/2019 05:07






Um espaço para refletir sobre a miséria, o ódio e a indiferença que têm encontrado morada no coração humano

Ela raramente sai de casa. Só por necessidade, pois sempre volta cansada e tensa das idas e vindas a Belo Horizonte. Nesse dia, ela deixou o ninho acolhedor longe de todas as mazelas contemporâneas para ir a uma consulta médica. Um pensamento não saía da cabeça dela. Em breve ia ser avó pela primeira vez, uma experiência nova, desconhecida, que a enchia de ternura e alegria, pois os filhos já haviam alçado voo para outras paragens.

Com o coração leve, ameno como aquela manhã azul, e uma brisa soprando nos cabelos, ela pensava que teria de se entregar à nova missão de avó, quando o trânsito parou na BR, perto dos motéis da região. O motorista avisou: “Não vai dar tempo de chegar. Ocorreu algum acidente”. Um senhor sai do carro ao lado e diz: “Foi um suicídio. Um homem acaba de pular deste viaduto aqui. Morreu”.

Como se o ar fugisse, ela ficou paralisada, envolta em perguntas sem respostas. Não dava mais para comemorar nada. Que solidão. Que cansaço. Que abandono. Que fala muda. Será que deixou uma carta de despedida? Será que teve tempo de abraçar a mulher? De tomar café da manhã? Por que não deu pistas, pediu ajuda? Ninguém percebeu? Onde estão os círculos da misericórdia? Aos 66 anos, ela sabe que a dor é silenciosa. Não alardeia, não deixa rastros. A dor é muda, ao contrário da alegria.

Parada no trânsito, ela pensou nos tempos caóticos de hoje, de chumbo, dedo em gatilho apontado para a morte dos sonhos. Tempo de cólera, de ódio. Tempo de trevas, de disparar 80 tiros “por engano” em um cidadão acima de qualquer suspeita. Só porque é negro. Tempo de medo, de pânico, de desconfiança, de ser suspeito pela cor da pele, pela orientação sexual, por ser mulher, por ser pobre, velho.

Ela queria fazer algo. Gritar pelo suicida. Ficou alucinada com a atitude daquele homem. Pior do que o suicídio é o que presenciou em seguida. Uma jovem, de mais ou menos 30 anos, vestida com uniforme de uma empresa de telefonia, de crachá e tudo, parecia ter tomado o veneno circulante no ar desse país. O cálice amargo da indiferença pela vida do outro transbordou, e a moça vociferou: “Que droga! Vem suicidar logo aqui? Fosse suicidar em outro lugar!”. Devia estar atrasada para chegar ao matadouro de todos os dias, não podia perder a hora do ponto de entrada para o telemarketing da vida.

Algum tempo depois, o trânsito foi liberado e ela seguiu em frente, mas, inquieta, se perguntava: Quanto vale uma vida? Nem alguns momentos de espera? De compaixão pela dor do outro? Não dá para se colocar no lugar desse ser que não viu nem um rasgo de luz pelo caminho?.

Ela, então, refaz a própria história. De todos que passaram pela vida dela, tentando enquadrá-la em uma profissão, sem sucesso. Ela nunca conseguiu ser rótulo de embalagem nenhuma. Ela nunca se enquadrou na normalidade vigente e só agora entende por que o filho lhe disse certa vez que ela sempre foi fora da curva.

Sim, pois nunca se acostumou a viver no meio do ódio, nem se acomodou, ou fez de conta que não estava vendo, que o problema não era dela, mas do outro.

Não é o feitio dela. Por mais que consiga entender que o ser humano está passando por uma fase de fechamento de ciclos, de grandes tragédias, de pessoas ausentes de si, ela não pode compactuar com essas atitudes. Ela lutou pela liberdade das mulheres, pelo fim da ditadura, pelo respeito às crianças, aos velhos e aos diferentes. Ensinou aos filhos que homem também chora, ajuda em casa, cuida dos filhos, que pais não podem ser omissos, deixar tudo nas mãos das mães.

Tudo mais agravado agora, pois o discernimento da maioria das pessoas diminuiu ou foi extinto. Os grandes mestres, ela sabe, já previam esse momento, que denominaram de transição planetária, descortinando freneticamente a indústria do espírito, que também não está dando certo. O templo não está fora, mas dentro de cada um. Deus está na natureza, na observação das estrelas. Deus não está aos berros nas igrejas. Deus é silencioso como a dor. Ele não está no meio dessa barbárie que se espalhou como epidemia, nesse mundo sem cor, sem utopia. E a era de Aquário? Ela vai se questionando. E a paz desejada pela sua geração? Por que nos distanciamos uns dos outros? Por que pisotearam nossos sonhos? Ela não conhece esse mundo da indiferença pela dor do outro. Está assustada como um cão abandonado.

De sua parte, ela ainda acha tempo para ficar distante desse caos para estar na floresta com as árvores, plantas, flores e bichos. Cria tempo para brincar com as nuvens, ouvir o que as águas têm a dizer, ver o fogo crepitar. Mas tem algo que a está incomodando como dor de dente: a banalidade da vida diante de um drama, da dor do outro, a indiferença por alguém que está pronto para se jogar de um viaduto em plena quarta-feira pela manhã.

Pessoas filmando, fotografando, outras pressionadas pelo tempo. Sem nenhum pudor, falando alto ao celular. E ela ali parada no trânsito, até que tem uma ideia. Propor aos governantes que ainda não foram seduzidos e intoxicados pelo poder – e a quem mais interessar – fazer a Praça da Misericórdia. Não precisa de bancos, só de uma placa com o nome Praça da Misericórdia, para pensar sobre o significado da palavra, que é tirar a miséria do coração das pessoas. Quem sabe, lendo a placa todos os dias, os que passam levem essa mensagem no coração e a espalhem pelos quatro cantos do planeta?

Depois, é só colocar nomes novos nas ruas de Belo Horizonte. Rua da Compaixão, Rua da Escuta, Rua do Acolhimento, Rua do Afeto, Rua da Bem-aventurança, Rua do Ser, Rua da Dádiva, Rua da Paciência, Rua da Doação, Rua do Silêncio e Rua do Amor. Para apagar a imagem do dedo em gatilho, da morte a cada esquina. O que vocês acham?

PS.: O homem à beira do abismo foi salvo pelos bombeiros, que negociaram com ele em nome da vida – e conseguiram. A história acima foi vivida por uma de minhas amigas, dessas que são mais do que irmãs, que compartilham tudo que têm e não apenas o que está sobrando. Essa amiga é preciosa. Prefere ser chamada de ‘Duas Tranças’.


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