“As memórias de mim mesmo me ajudaram a entender as tramas das quais fiz parte.” A declaração de Paulo Reglus Neves Freire (1921-1997), educador, pedagogo e filósofo nascido no Recife, faz parte do Museu da Pessoa, organização da sociedade civil de interesse público (Oscip) sem fins lucrativos, criada em 1991 pela historiadora Karen Worcman. Já imaginou fazer parte de um museu? Isso mesmo. Ser parte do acervo e “objeto” de estudo e admiração? Se, antes, o concebíamos como espaço para exibir coleções de interesse artístico, cultural, científico e histórico, agora, em sua concepção virtual, Karen nos apresenta um acervo de histórias de vida, com depoimentos reais de qualquer pessoa que queria compartilhar suas vivências. Registradas, ao serem lidas e ouvidas, deixam marcas, transmitem conhecimento e perpetuam um legado de narrativas que podem causar identificação, reconhecimento, aprendizado e emoção.
O Museu da Pessoa contabiliza acervo de 20,9 mil histórias de vida e 62 mil fotos e documentos e já tem frutos em Portugal, EUA e Canadá. Mas, por que criar um museu de pessoas? “Por que tantos museus e nenhum da pessoa? O Museu da Pessoa nasceu exatamente dessa percepção de que havia museus sobre tudo e nenhum que valorizasse o que de mais valioso temos: nossa própria história. Um museu aberto à participação de toda pessoa, que tem como premissa a ideia de que cada história importa e é uma fonte de aprendizado sobre o outro e sobre nós próprios. Se museus são o espaço em que nos dedicamos a refletir sobre o que valorizamos e sobre o que importa, a história das pessoas deveria ser naturalmente vista como peça valiosíssima de museus”, explica Karen Worcman.
A ideia de Karen é estimulante, nos faz querer ouvir e até pensar na nossa própria história. E o que instiga é que ela não imaginou o museu coletando só histórias especiais e de intelectuais.
Nos mais de 20 mil registros, certamente, há aqueles que mais marcaram Karen. “Existem histórias, ou melhor, jeitos que as pessoas vivenciaram suas próprias histórias que me tocaram particularmente. Acho que isso ocorre com todo mundo. Algumas trajetórias ou olhares nos “dizem” algo que estamos prontos para ouvir e aprender. Destaco algumas: Krystyna Drozdowicz, uma sobrevivente da Segunda Guerra e guerrilheira; Idaliana, que criou o mocambo Pauxi, no interior da Amazônia.
Karen Worcman conta que o Museu da Pessoa tem um analytics que indica as histórias mais visitadas. As mais buscadas são as de superação, “aquelas que atendem a uma necessidade de inspiração por parte de quem busca. Creio que existem pessoas com muita curiosidade sobre a vida e sobre como cada um vive a sua. Em geral, essas pessoas têm uma tendência natural em querer ouvir o outro.”
ESCUTA
Em um mundo de tecnologia, inteligência artificial, robôs, redes sociais, enfim, em que a boa e velha conversa tem ficado de lado (ainda que transfigurada para a linguagem frenética via teclas!), é emocionante e reconfortante saber que há pessoas que buscam, querem e precisam ouvir as outras, mesmo aquelas que não conhecem. “Talvez, ouvir com atenção seja ainda umas das poucas atividades que nos levam de volta para dentro de nós mesmos. Ainda que seja uma escuta, é uma escuta silenciosa, nos faz parar e ter que nos conectar com outro ser humano. Acho que isso será cada vez mais necessário para que continuemos a ser “pessoas”. A possibilidade de se separar de si próprio é enorme e as tecnologias atuais são grandes impulsionadoras desse nosso medo de vazio e consequente preenchimento do tempo e do vazio com os ruídos. Isso os afasta de nossa própria humanidade.
Com tantas histórias, será possível dizer o que o ser humano tem de mais espetacular para deixar registrado? Para Karen, é a experiência sentida, vivida, pensada e narrada. “Isso é belo e profundamente humano, não necessariamente espetacular. É simples. E por isso mesmo é o que conecta. Uma capacidade que, a princípio, todos têm. E nisso nos igualamos na pura beleza de ser pessoas.” Ela concorda que a Era Digital já dá mostras de adoecimento, com tanto isolamento e individualismo. “Quando o museu começou, acreditava que dar a possibilidade de toda e qualquer pessoa ter sua voz como parte da narrativa social seria suficiente. As tecnologias mostraram que não basta falar.