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Recordar é viver

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Na pequena cidade de Fray Bentos, no Uruguai, nos idos de 1800, viveu Irineu Funes, cuja memória era tão excepcional que ele era incapaz de esquecer. Era dono da memória perfeita, o que sempre foi uma ambição humana. Funes, el memorioso é o personagem principal de um dos contos do livro Ficciones, de um dos maiores escritores da literatura estrangeira, o argentino Jorge Luís Borges, um dos mais importantes exemplos do realismo fantástico, gênero também construído por Júlio Cortazar e Gabriel Garcia Márquez. Por ser incapaz de esquecer, Funes não consegue ter ideias e, portanto, não há como pensar. É algo irreal, mas já imaginou se todos tivéssemos a capacidade da memória perfeita?

Numa sociedade contemporânea cheia de filtros, é natural que a memória da geração atual seja, naturalmente, seletiva. Mas até que ponto o ritmo acelerado do mundo atual, a facilidade e a rapidez dos meios de comunicação (determinadas pelo avanço tecnológico) afetam a capacidade humana de reter fatos e experiências? Será que corremos o risco de viver em uma sociedade do esquecimento?

Há várias causas para a perda de memória. Desde o envelhecimento, a ansiedade, passando pelo estresse, cansaço, alteração do sono até doenças neurológicas, como Alzheimer. A maioria é previsível e reversível com a mudança de hábitos de vida como meditação, técnicas de relaxamento e treino da memória.

É possível exercitá-la e assim torná-la mais ativa.

A alteração da memória é mais comum em idosos, mas jovens também podem encarar esquecimentos nada confortáveis. A notícia boa é que há saída. E, na verdade, como não existe memória perfeita, esquecer faz parte. Aliás, nenhum ser humano desejaria ser como Funes, prisioneiro de sua capacidade e incapaz de pensar sobre o que vive. Há coisas que precisamos e desejamos esquecer.

O Bem Viver conta histórias do bancário Paulo Henrique Lima de Resende Chaves, de 33 anos, e da aposentada Nagibe Saigg, de 69, que têm em comum a memória “ruim”. Ambos revelam o que fazem para que as lembranças permaneçam registradas por mais tempo possível. Ela confessa que “nunca me preocupei muito com a memória, total falta de interesse.
Achava que, se não guardasse, não precisaria. Nasci em Belo Horizonte e não sei nenhum nome de rua”. Já Paulo revela que “a minha memória nunca foi boa, sempre esqueço coisas do dia a dia. Sempre decorei fazendo repetições, o que não é errado. Mas com algumas técnicas de estudo percebi que não é uma maneira eficiente”. E esta edição também narra a história de Karel van Den Berger, de 99, um holandês que veio para o Brasil há mais de 50 anos e é um exemplo de vitalidade. Aos 97, sofreu um leve AVC e sentiu que havia ocorrido uma pequena perda da memória e hoje pratica exercícios para que a tenha em dia. E conseguiu.

Nagibe Saigg, formada em letras (português e francês), trabalha com estimulação cognitiva incentivando as funções relacionadas à memória: “Tornei a minha memória ruim, não cuidei e não me preocupei.
Nunca quis saber nome de rua, de livro, de artista da TV e sempre perguntava, para quê? Nunca aprendi tabuada. Só queria aprender o que me fazia sentido. Com 50 anos, fui fazer faculdade da maturidade na Estácio, foi quando me deu o clique. Fiz francês e, ao me pedirem, não consegui soletrar uma palavra. Foi horrível, fiquei chocada. Até saí da faculdade. Passei até a ter dificuldade para dançar, o que faço desde os 5 anos, não guardava os passos da coreografia. Reparei que, ao envelhecer, a memória tinha piorado. Também faço parte de um grupo da maturidade na Igreja Santa Luzia, na Cidade Nova, e depois de uma reunião mensal, com uma palestra sobre a memória, percebi que tinha de tomar uma atitude”.

Assim, há dois anos, Nagibe e o marido, o engenheiro Eduardo, de 62, têm uma aula por semana, durante duas horas, na clínica Ginástica do Cérebro: “Melhorou tudo na minha vida cotidiana. Fazemos cálculo com ábaco, há jogos, desenhamos, enfim, várias atividades.
Antes, não prestava atenção em nada, levava a vida anestesiada, ainda que seja curiosa, mas só sobre o que me interessava. Agora, estou mais ligada e, garanto, melhor do que quando jovem. E ainda faço tricô, crochê, hidroginástica, amo ler e tudo isso ajuda a minha memória”.

MEDO E EMOÇÃO

Em entrevista ao site do médico e oncologista Drauzio Varella, o médico, professor e neurocientista Ivan Izquierdo, argentino naturalizado brasileiro, uma das maiores referências no mundo científico, explica que memória é aquisição, conservação e evocação de informações provenientes de fora ou de dentro do indivíduo. E que há processos diferentes de memória. O mais rápido é a do trabalho, que dura segundos, logo se esquece. O que dura horas ou minutos é o usado para conversar, entender um livro e ir a um lugar. O terceiro é o da memória de longa duração, que persiste durante seis horas ou mais. Conforme Ivan Izquierdo, a memória que melhor conservamos é a que tem conteúdo emocional forte, ou seja, a morte de alguém da família, o nascimento do filho, o casamento. E avisa: “A memória perfeita não existe”.

Ivan Izquierdo explica ainda que o ser humano tem 100 bilhões de neurônios e cada um deles se comunica com outros mil. Portanto, o número de permutações é imenso e todos entram em jogo mais cedo ou mais tarde.
Assim, quanto mais organizada essas conexões melhor funcionará a memória. Tema dos mais instigantes, o neurocientista ensinou que “somos aquilo que também escolhemos esquecer. Cada indivíduo escolhe o que vai guardar e o que vai esquecer. Às vezes com intervenção da vontade, às vezes, não. Isso nos distingue como pessoas. Boa parte do processo é inconsciente. Curiosamente, o cérebro nunca apaga, pode até impedir a invocação a qualquer momento, as memórias de medo, porque ele é necessário para a sobrevivência.” A memória do medo nunca é apagada para que o ser humano possa escolher entre fugir ou enfrentar.

É importante que todos saibam que não saber onde colocou as chaves não é problema. Isso porque a maior parte do esquecimento é provocada pela falta de atenção. O que preocupa é quando ele passa a ser contraproducente. Aí não é bom e é preciso ter um diagnóstico profissional..