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O lento despertar do novo ano

Elas não viram quando um arco-íris surgiu no céu e quase tocou a janela do ônibus onde estavam, acariciando as duas. Não tiveram a oportunidade de ver o espetáculo da natureza, focadas na tela do celular


postado em 06/01/2019 05:06

 

 

 




Nem os fogos de artifício da virada do ano nem os raios, trovoadas e tempestades que vieram impiedosamente para lavar céu e Terra. Nem o som de festa e os ruídos escancarados de música das casas vizinhas, que atingiam decibéis incontáveis, conseguiram despertar o ano novo dentro de mim.

Neste domingo, o ano novo ainda cochila preguiçoso no meu ser. Nem arrastando cadeiras, os anjos da guarda de um novo tempo acordaram. Tive que espreguiçar, porque nem banho de ervas e cachoeira ou rituais tradicionais conseguiam me apontar o novo. Então, resolvi caminhar para ver a cara do ano novo.

Enquanto andava pela MG-10, velhas assombrações me assaltaram, quando me lembrei de uma cena dentro do ônibus.

Na poltrona ao meu lado, mãe e filho iam da Serra do Cipó para BH. A mãe não deveria ter nem 25 anos e o filho uns 4. Ela se dobrava de rir teclando o celular. Parece que a conversa estava ótima. O filho ao lado chamava e falava algo que não dava para escutar direito e ela se virava rapidamente para o filho e dizia: “Espera aí” – e voltava para o celular com todo o afeto e dedicação que não conseguia dar para o menino. Tive que mudar de lugar, porque estava ficando irritada. Na volta para a Serra do Cipó, uma cena parecida. Mãe jovem e uma filha de 3 estavam no ônibus.

Com a cabeça baixa, a mãe também se divertia ao celular. Tudo bem se a filha não estivesse pedindo atenção, chamando a mãe, até que começou a chorar e a gritar para ser ouvida. A mãe imediatamente passou o celular para a menina, que parou de chorar e se entregou a um jogo virtual. A mãe, coitada, cansada de tanto zapear, aproveitou para dormir um pouco.

Elas não viram quando um arco-íris surgiu no céu e quase tocou a janela do ônibus onde estavam, acariciando as duas. Não tiveram a oportunidade de ver o espetáculo da natureza, focadas na tela do celular.

Neste novo ano, vejo com imensa tristeza e desesperança algumas famílias que vivem no meio virtual, abusando de equipamentos eletrônicos e redes sociais. Pais que oferecem cedo demais aos filhos a possibilidade de se isolar da vida com jogos eletrônicos e celulares. Outro dia vi um filme alemão impressionante, sobre um casal de namorados adolescentes que combina o assassinato de outra jovem pelo celular e pelo skype. O crime é efetivado. Ao longo de quase duas horas de filme, os namoradinhos trocam não mais que cinco minutos de conversa olho no olho. Custei pra dormir.

Tenho uma amiga em BH que faz o contraponto a toda essa parafernália tecnológica, apesar de reconhecer que o mundo virtual tem seus méritos e faz parte da geração de sua filha única, Bárbara, de 8. A decisão de Cynthia de ter uma filha só foi totalmente consciente. Ela e o marido, porém, sabiam que, no futuro, ela sentiria falta de uma companhia constante. A partir do momento em que ela começou a pedir um irmão e o casal negou, a menina passou a reivindicar um animal de estimação. Ela devia ter uns 5 anos na época. Cynthia deu todas as desculpas possíveis, pois sabia que ela não conseguiria cuidar de outro ser além dela própria, pois ainda estava conquistando sua independência.

Outra coisa que a preocupava muito era a percepção crescente de que as crianças de hoje não aprendem a brincar no mundo real. Dedicam-se cada vez mais a atividades de indulgência imediata e não constroem laços de verdade. Cynthia vem construindo pontes para a filha se descobrir e criar laços no mundo físico, como se exercitar com dança e esportes. Ter um animal de estimação complementaria essa ideia.

No fim de 2017, o casal prometeu dar um cãozinho depois das férias. Mãe e filha pesquisaram juntas sobre o tipo de animal e decidiram por um westie, cão de pelagem branca e olhos negros. A raça pareceu boa para crianças, pois westies são pacientes e fisicamente fortes, apesar de pequenos. Lola chegou à casa de Cynthia cheia de energia e passou a ser companhia constante para Bárbara. Um bom exemplo para acordar o ano novo.

Voltando à paisagem da Serra do Cipó, vejo dona Maria D’Anunciação, com quase 90, sentada na varanda da casa, às margens da MG-10, e me encanto. Ela sorri e acena todas as vezes que passo por lá. Como só as mulheres da sua geração sabem entender o significado de palavras como paciência e delicadeza. Entre flores de ibisco e bordado, Maria D’Anunciação me diz, com seu gesto, o que preciso para o novo ano: paz, silêncio, delicadeza e flores.

Por falar em flores, acabo de encontrar Toni, jardineiro e nativo da Serra do Cipó, que fala assim: “Você precisa plantar flores na sua casa, pois casa que tem flor, Nossa Senhora visita três vezes ao dia”. Obrigada, Toni, por me encantar com a sua fala, me ofertar poesia neste novo ano que ainda está espreguiçando. Só acredito, por mais que me tentem, me excomunguem, me tirem do prumo, que a vida não vale nada sem poesia, emoção e cuidado com o outro e com a natureza. Ajude-me, Toni, a plantar um jardim na minha casa, com muitas flores, para que nada mais me ofusque, porque ano novo é conversar com pessoas como você, que também já chamou a minha atenção para o jeito de andar. Disse que o povo da cidade anda errado, porque põe o calcanhar na frente. O certo é levantar o calcanhar e colocar a ponta dos pés na frente. Estou treinando, Toni, para ver se um dia consigo alcançar você.

Sinal de um novo tempo veio também da Serras Azuis, farmácia de Orlando, que, ao ver uma velha senhora entrar sozinha, pergunta: “Oi, dona Anita, a senhora veio até aqui sozinha?”. Dona de si, Anita responde que não. Pediu carona na rodovia. Saiu de casa na Vila Santa Rita para pagar as contas do mês, tarefa que faz questão de cumprir ela mesma. Tem vergonha de incomodar um dos cinco filhos. Então, se vira. Orlando deixa os afazeres na farmácia para levar dona Anita de volta, que não cede facilmente, pois ainda tem que pagar outras contas no supermercado e na loja de ração dos cachorros. Orlando dá o braço para dona Anita e lá se vão juntos colocar as contas dela em dia.

Salve, Orlando; salve, Maria D’Anunciação; salve, Toni; salve, Cynthia, que conseguiram, sem fazer barulho, acordar o ano novo dentro de mim!


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