Estado de Minas 90 ANOS

Modernistas, conservadores e vanguardistas: a literatura e as páginas do EM


postado em 15/06/2018 06:55 / atualizado em 14/06/2018 19:31

(foto: * Publicado em 25 de dezembro de 1932)
(foto: * Publicado em 25 de dezembro de 1932)

Definitivamente, ali estava uma provocação modernista. Em pleno dia de Natal de 1932, Carlos Drummond de Andrade publicava no Estado de Minas os seguintes versos: “Os desiludidos do amor/ estão desfechando tiros no peito./ Do meu quarto ouço a fusilaria./ As amadas torçem-se de goso./ Oh quanta materia para os jornais”. Necrologico dos desiludidos do amor deve ter chocado muita gente naquela pacata – e conservadora – BH. No desfecho do poema, as moças dançam um samba “bravo, violento” sobre a tumba dos amados.

Em abril de 2018, outro poeta desafinava o coro dos contentes nas páginas do EM. Ricardo Aleixo, de 57 anos, lançava o livro Pesado demais para a ventania. Em vez do lugar de fala – conceito tão em voga atualmente –, propôs o “lugar de falha”. Ou seja, a poesia, “essa língua estrangeira que não tem como entender”. Em Re: provérbio, esse mineiro diz: “quem nunca comeu farelos/ aos porcos se misturando/ que atire a primeira/ pérola”.

O embate entre vanguarda e conservadorismo – marca registrada do mineiro, diriam alguns – está desde sempre nas páginas do Estado de Minas. Eduardo Frieiro fustigava os modernistas e o então prefeito Juscelino Kubitschek em seus artigos, nos anos 1940. Crítico da “Pampulhocracia”, ironizava a aliança de JK com artistas e literatos “comunistas”. Frieiro, aliás, apelidou de “hangar de Deus” a igrejinha de São Francisco, o arrojado projeto de Oscar Niemeyer. Isso não impediu que o autor do clássico Feijão, angu e couve aceitasse o convite de Juscelino – já governador – para implantar a Biblioteca Pública Estadual, onde, aliás, fez um belíssimo trabalho...

Era um combate – e dos bons. Guilhermino Cesar, secretário de redação, dizia que ele, no EM, e Carlos Drummond, no Diário de Minas, contrabandearam o modernismo para os dois jornais. Integrante do Grupo de Cataguases e um dos talentos da Revista Verde, o jovem Guilhermino foi bom “marqueteiro” das ousadias de sua turma. Em 1929, exibia no EM textos da publicação modernista leite criôlo. Em maio de 1930, aliás, o jornal daria um furo de reportagem ao anunciar o lançamento de Alguma poesia, o livro de estreia de Carlos Drummond de Andrade, produção independente bancada pelo próprio poeta.

Talento revelado quatro décadas depois, Roberto Drummond se considerava um escritor lapidado na redação da Rua Goiás, “forjado nas crônicas diárias sobre futebol”. O colunista, repórter premiado e subeditor de Cultura, se tornou destaque da literatura pop com o premiado volume de contos A morte de DJ em Paris (1975). Em 1991, Roberto lançou o romance Hilda Furacão, adaptado por Gloria Perez para a TV Globo em 1998. A história da “moça de bem” que se torna prostituta e vira estrela da zona boêmia de BH, interpretada por Ana Paula Arósio, conquistou o país.

Morto em 2002, Roberto não viu sua história “bombar” na internet em 2014, quando o EM revelou que Hilda Valentim, fonte de inspiração da personagem, morava em Buenos Aires. Aos 83 anos, pobre, doente e sozinha, ela rememorou os dias de glória junto do marido, o jogador de futebol Paulo Valentim. No fim daquele ano, Hilda morreu na capital argentina.

Wander Piroli foi outro destaque da literatura que “batucou” nas máquinas de escrever da redação do jornal.

Ao longo de seus 90 anos, o EM teve como colaboradores os escritores Rubem Braga, Guimarães Rosa, Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos, Cecilia Meireles, Rachel de Queiroz, Manuel Bandeira, Mário de Andrade, Affonso Romano de Sant’Anna, Marina Colasanti, Ziraldo, Alcione Araújo e Frei Betto, entre muitos outros. Músicos viraram cronistas. Foi o caso dos compositores Fernando Brant e Chico Amaral e da cantora Fernanda Takai.

O suplemento e
as vanguardas

A Semana Nacional de Poesia de Vanguarda, realizada em 1963 com o apoio da Universidade de Minas Gerais (futura UFMG), significou um passo adiante do modernismo. O reitor Orlando Carvalho chegou a receber telefonemas da polícia, acusando de “comunistas” os idealizadores do evento. Não cedeu à pressão. O Suplemento Dominical do EM, comandado pelo poeta Affonso Ávila (coordenador da Semana) e o jornalista Cyro Siqueira, fez ampla cobertura do encontro. Vieram a BH Haroldo de Campos, Augusto de Campos, Décio Pignatari e Benedito Nunes.

Um jovem desembarcou em BH só com o dinheiro da estada. Mesmo assim, os organizadores da Semana aceitaram inscrevê-lo. Era Paulo Leminski, de 18 anos. Quando morreu, aos 44, deixou obra que desmistifica o “mito” de que brasileiro não gosta de poesia. Aquele mascote dos vanguardistas de 63 é amado pela garotada deste século 21. Em 2013, lá estava ele na lista dos livros mais vendidos do Brasil. O Suplemento, aliás, abriu espaço para jovens tão talentosos quanto Leminski – entre eles o contista Luiz Vilela.

Durante as comemorações das três décadas da Semana de Vanguarda, a escritora Laís Corrêa de Araújo – colaboradora do EM por muitos anos e rara presença feminina no evento de 1963 – chamava a atenção para outro jovem prodígio: Sebastião Nunes. Em junho do ano passado, ele foi tema do caderno Pensar, publicado às sextas-feiras neste jornal. Com sua “poesia híbrida”, mesclando texto, ilustração e recursos gráficos, Nunes, aos 78 anos, continua lançando (saudáveis) provocações ao leitor. Assim como fazia Drummond, em 1932, com aquelas moças sambando sobre túmulos no dia de Natal.

 

 

Sempre em cartaz é o quarto especial em homenagem aos 90 anos do EM. Cada edição mensal resgata a cobertura de um grande tema ao longo de nove décadas, analisa o momento atual e aponta perspectivas para o futuro. O último caderno, Assim vivemos, discutiu as transformações na sociedade mineira, que foi obrigada a se adaptar a modificações no espaço urbano, passou a incorporar novas configurações familiares e conquistou avanços em relação à diversidade e à inclusão social. Mas ainda há muito a caminhar.

 

 

O encontro com a lenda 
“Tudo começou com uma foto. Em 2003, o jornalista Jader de Oliveira, da BBC de Londres, veio a BH. Como sempre, nos encontramos para falar do passado, da amizade dele com meu pai, Felippe Drummond. Só que desta vez foi diferente. Jader me deu de presente a foto de Paulo Valentim e Hilda Furacão no apartamento do casal, em Buenos Aires. Escrevi sobre o craque e a prostituta. Paulo havia jogado no Boca Juniors, na Argentina, e no México. Descobri que Paulo tinha sido estivador. Mas foi só. Onze anos depois, o telefone toca. Washington Melo, outro amigo de meu pai, pediu meu número para passar para uma amiga. No dia seguinte, Marisa Barcellos me ligou da Argentina. Queria saber se era eu o autor da matéria sobre Hilda Furacão publicada no EM. Respondi que sim. ‘Pois ela está aqui, comigo, no asilo em que trabalho em Buenos Aires’, garantiu. Fui ao asilo Hogar Guillermo Rawson, na capital argentina. E lá encontrei Hilda, a maior reportagem da minha vida.”

Ivan Drummond  é jornalista do EM desde 1979. Vencedor do Prêmio Esso duas vezes, recebeu o Prêmio 
Petrobras de Jornalismo, em 2016, pela série sobre Hilda Furacão

 


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