Estado de Minas 90 ANOS

Cenário das artes visuais teve tensões registradas nas páginas do EM


postado em 15/06/2018 06:30 / atualizado em 14/06/2018 19:42

O pintor fluminense Alberto da Veiga Guignard, mestre de gerações de artistas plásticos, dá aula no Parque Municipal de Belo Horizonte(foto: Eugênio Silva/O Cruzeiro/Arquivo EM - 1956)
O pintor fluminense Alberto da Veiga Guignard, mestre de gerações de artistas plásticos, dá aula no Parque Municipal de Belo Horizonte (foto: Eugênio Silva/O Cruzeiro/Arquivo EM - 1956)

Provocadoras e surpreendentes. Assim eram as obras exibidas no Salão do Bar Brasil, exposição realizada em 1936 por jovens artistas plásticos no subsolo do Cine Brasil, na Praça Sete. A negra miserável ao lado dos três filhos, os pequenos jornaleiros dormindo na sarjeta pintados por Fernando Pierucetti, o soldado e a namorada humilde no quadro de Delpino Júnior não deixavam dúvida: a conservadora BH, de apenas 39 anos, respirava ares tão ousados quanto a São Paulo da Semana de Arte Moderna de 1922.

O aclamado tradicionalista Aníbal Mattos também exibia seus quadros na ocasião, no Teatro Municipal. “Delpino, Fernando e outros reagiram bonito. Aí está uma exposição, expressão de arte moderna, para o povo entender e julgar”, anotou, desafiante,  o escritor José Bezerra Gomes no livro de presenças do Salão do Bar Brasil. O prefeito Otacílio Negrão de Lima compareceu à mostra, elogiou aqueles moços. Em outubro de 1936, o Estado de Minas noticiava tanto a presença dele no evento quanto a criação do Salão de Bellas Artes da Cidade de Belo Horizonte.

Porém, Negrão de Lima entregou a coordenação do evento ao conservador Aníbal, refratário aos modernistas. O “grupo dos novos” protestou. E o choque entre tradição e ruptura não se limitaria aos anos 1930. Tal embate tem marcado profundamente o cenário das artes em Minas – terra com fama de conservadora, mas celeiro de visionários.

Quadro polêmico//Cabeça de galo, pintura de Candido Portinari que causou furor na conservadora BH dos anos 1940, ganhou o apelido de Olag nas páginas do EM(foto: Candido Portinari/reprodução)
Quadro polêmico//Cabeça de galo, pintura de Candido Portinari que causou furor na conservadora BH dos anos 1940, ganhou o apelido de Olag nas páginas do EM (foto: Candido Portinari/reprodução)

Em 1944, nova ousadia. A 1ª Exposição de Arte Moderna, no Edifício Mariana, promoção do prefeito Juscelino Kubitschek, indignou os conservadores. Ganhou o apelido de Semaninha, pois tal e qual a Semana de Arte Moderna de 22, abria-se “ao mundo de amanhã”, nas palavras do antropofágico Oswald de Andrade (aliás, um dos ilustres convidados do evento). Oito quadros foram atacados a giletadas.

Cabeça de galo, pintura de Portinari, foi rebatizada Olag por Jair Silva nas páginas do EM. Irônico, o articulista invertera as letras da palavra galo. “Eis o sr. Candido Portinari com seu galo de cabeça para baixo (um galo muitíssimo sem-vergonha). Estaria naquela posição a espiar as pernas das galinhas boas?”, espinafrava o conservador Jair. O apelido Olag pegou. Até hoje muita gente acha que esse é o nome do quadro.

Fato é que a Semaninha de BH causou a maior polêmica das artes plásticas brasileiras desde a Semana de 1922. Exibia 134 obras assinadas por Portinari, Volpi, Anita Malfatti, Tarsila do Amaral, Iberê Camargo e Lasar Segall, entre outros, abrigada pela cidade do revolucionário Conjunto Arquitetônico da Pampulha, parceria de JK e Oscar Niemeyer.

Aliás, tradição e modernidade “duelaram” na igrejinha de São Francisco. Obras-primas de Portinari foram rejeitadas pelo arcebispo dom Cabral, que se recusou a abençoar o templo da Pampulha, que passou 14 anos fechado. Foi “salvo” em 1959 pelo papa João XXIII, que desejava expor no Vaticano a via-sacra de Portinari que desagradara a dom Cabral. Hoje, o conjunto é patrimônio mundial da humanidade.

Um mestre estava à frente da Semaninha: Alberto da Veiga Guignard. Convidado por JK, o aclamado pintor se mudou do Rio para BH nos anos 1940. Por sua escola de belas-artes, no Parque Municipal, passaram Amilcar de Castro, Farnese de Andrade, Franz Weissmann, Mary Vieira, Maria Helena Andrés, Chanina, Wilma Martins, Mário Silésio e Sara Ávila, entre outros artistas que se destacariam no cenário nacional. Amilcar, por exemplo, tornou-se referência em escultura no Brasil.

Nos anos 1960, outro embate. Frederico Morais, crítico de arte do EM, saudava a nova geração que ousava questionar o “guignarismo”, buscando experimentar caminhos e estéticas além daqueles ensinados por Guignard. Em 1969, o 1º Salão Nacional de Arte Contemporânea destacava José Ronaldo Lima, Lotus Lobo, Anna Amelia, Decio Noviello e José Alberto Nemer, entre outros.

Aristides de Sousa, ator da periferia de BH premiado no Festival de Brasília em 2017(foto: Sinny/divulgação)
Aristides de Sousa, ator da periferia de BH premiado no Festival de Brasília em 2017 (foto: Sinny/divulgação)

Em 1970, a vanguarda ganhou as ruas de BH. Em plena ditadura militar, os jovens enfrentavam a censura. Artur Barrio espalhou trouxas ensanguentadas nas margens do Rio Arrudas, Cildo Meireles sacrificou galinhas, na Semana da Inconfidência, na instalação Tiradentes – Totum monumento. Os dois trabalhos remetiam à tortura. “Quem tem medo de Teresinha Soares?” – título do artigo de Henry Corrêa de Araujo publicado no EM de 11 de agosto de 1973 – batizou a exposição que o Museu de Arte de São Paulo (Masp) dedicou a ela em abril de 2017. Cinquenta anos antes, essa artista causara furor em BH com seus pioneiros happenings, questionando o conservadorismo e a tradicional família mineira.

A inquietação também marca gerações posteriores – Marcos Benjamin, Arlindo Daibert, Liliane e Marilá Dardot, Marco Túlio Resende, Rivane Neueschwander, Cinthia Marcelle, Leonora Weissmann, Pedro Motta e Rosangela Rennó, entre outros. Em 1983, a pintora Ana Horta chamou a atenção ao explorar a cor de forma peculiar em mostra no Museu de Arte da Pampulha. “É preciso fugir do marrom”, declarou ela ao EM. Em 1984, Ana seria um dos detaques da icônica coletiva Como vai você, Geração 80?, no carioca Parque Lage.

Nos anos 1990, a arte multimídia criada em Minas chamou a atenção do mundo, sobretudo o belo-horizontino Eder Santos, com suas videoinstalações e videoesculturas.

No século 21, autores radicalmente experimentais desafiam fronteiras estéticas. Paulo Nazareth, que ressignificou a performance usando o corpo e o comportamento como “suporte”, levou seu trabalho para a Bienal de Veneza, Estados Unidos e Europa.

Minas ganhou uma vitrine globalizada da arte contemporânea. Aberto ao público em 2006, Inhotim, em Brumadinho, reúne 23 galerias e pavilhões dedicados a dezenas de autores brasileiros e estrangeiros. O acervo do megaespaço reúne 1,5 mil obras, metade delas exposta.


Cinema muito
além da tela

“Que massa! Deixa eu entrar nele?” Foi assim que Aristides de Sousa, de 30 anos, virou ator depois de trombar com o cineasta Affonso Uchôa rodando cenas de A vizinhança do tigre (2014) num bairro humilde de Contagem. Aristides contou ao EM que já fez de tudo um pouco – vendeu picolé e água mineral, entregou cestas básicas, viveu de bicos. Agora estuda teatro na escola do Grupo Galpão. Em 2017, ele ganhou o Kikito de melhor ator no Festival de Brasília por seu trabalho em Arábia, outro filme de Uchôa, desta vez em parceria com João Dumans.

Emblemáticos da produção contemporânea brasileira, Vizinhança... e Arábia trazem a marca do neorrealismo, abordando a vida nas periferias brasileiras. Nos anos 1950, outros jovens mineiros, fãs do neorrealismo italiano, fundaram o Centro de Estudos Cinematográficos (CEC), em BH. Editavam a Revista de Cinema, uma espécie de “bíblia” da sétima arte no país. Aliás, Glauber Rocha era um dos “devotos”: certa vez, revelou que jovens baianos como ele decidiram começar a filmar por causa da Revista.

O CEC foi celeiro de pensadores que “ocuparam” as páginas do EM para debater questões ligadas ao cinema, liderados por Cyro Siqueira, que posteriormente assumiria a editoria-geral do jornal. Críticas eram assinadas por Geraldo Veloso, Mario Alves Coutinho, Paulo Augusto Gomes, Ricardo Gomes Leite e, posteriormente, Marcello Castilho Avellar.

É fato que o eixo Rio-São Paulo sempre monopolizou a produção nacional. Mas várias gerações lutaram para fazer cinema em Minas. Desde os anos 1950, o EM acompanhou a peleja de Schubert Magalhães, dos irmãos Geraldo e Renato Santos Pereira, Carlos Alberto Prates Correia, Luiz Renato Bréscia, Maurício Gomes Leite, Helvécio Ratton, Rafael Conde, Cao Guimarães, Ricardo Alves Jr., Andre Novais de Oliveira, Gabriel Martins e Maurílio Martins, assim como das cineastas Marilia Rocha, Juliana Antunes e Clarissa Campolina.

A partir dos anos 1980, o vídeo mineiro fez fama nacional por meio da obra do pioneiro Eder Santos. Lucas Bambozzi e Patrícia Moran também se destacaram. Com a proposta de abrir espaço para a produção autoral contemporânea e valorizando as novas linguagens, a Mostra de Cinema de Tiradentes chegou à 20ª edição em 2018.

Esse evento, de certa forma, mantém o “espírito CEC”, estimulando a reflexão sobre a criação audiovisual. “Somos a maior plataforma de lançamento do cinema independente brasileiro”, orgulha-se Raquel Hallak, idealizadora da Mostra de Tiradentes.


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