Jornal Estado de Minas

GEOPOLÍTICA

Contradições: vende-se floresta por petróleo na República Democrática Congo

Estamos vivendo um período de constantes contradições. Desejamos viver em paz, mas atacamos colegas e desconhecidos por emitirem uma simples opinião ou por lavar uma calçada num dia de sexta-feira qualquer. Defendemos a igreja, mas não atendemos à súplica de um menos afortunado; queremos preservar a água, mas não nos indignamos com a derrubada das florestas; prometemos combater o aquecimento global, mas continuamos extraindo e consumindo carvão e petróleo. Entre tantos contrastes, o ambiental é o mais evidenciado.





O meio ambiente está perdendo a luta para os combustíveis fosseis. Há quase um ano, o mundo se reuniu em Glasgow, na Escócia, para a COP 26 para tratar de questões climáticas globais. Muito foi discutido e prometido. Mas, entre o que se fala e o que se cumpre, há um grande abismo alimentando as contradições humanas. 

Um dos casos mais recentes desses paradoxos envolve a venda de campos de gás natural e petróleo na República Democrática do Congo (RDC). O presidente Félix Tshisekedi anunciou em julho a venda dos combustíveis fosseis alojados na Floresta do Congo, a segunda maior floresta tropical do mundo (perde somente para a Floresta Amazônica, que também registra recordes de devastação). 

Esse mesmo líder, que durante a COP 26 pediu ajuda de mais de US$ 500 milhões (e conseguiu!) para proteger o meio ambiente, coloca à venda seus recursos fósseis, o que poderá ter um efeito nefasto sobre o clima global, o meio ambiente e comunidades locais.





De acordo com o New York Times, há possibilidade de ganhos anuais de mais de US$ 30 bilhões, se a extração de mais de milhão de barris de petróleo/dia, divulgada pelo governo, se confirmar.  Essas cifras enchem os olhos mais ambiciosos, mesmo que o preço a ser pago seja infinitamente superior a médio prazo, devido aos impactos que podem acarretar.

Entretanto, a área à venda abriga a maior turfeira tropical do mundo (espessas camadas de matéria orgânica, parcialmente decomposta, que se formaram ao longo de milhares de anos e que armazenam enorme quantidades de carbono), com mais de 165 mil km² de área dentro da floresta (1/3 desse território encontra-se na vizinha República do Congo). 

Essa região consome mais CO2 que libera, sendo um sumidouro importante de GEEs (Gases de Efeito Estufa). A exploração liberaria na atmosfera o equivalente a três anos de todas as emissões globais de carbono, segundo os estudos realizados, divulgados no site The Conversation. 





O ministro do Meio Ambiente congolês utilizou o seguinte argumento para a degradação que deve acompanhar o processo exploratório: “Nós nos importamos mais com os seres humanos do que com os gorilas. Temos um dever para com nosso povo (estimados em quase 100 milhões de habitantes), não com as ONGs”. 

A RDC é cortada pela linha equatorial, o que explica as semelhanças térmicas, pluviométricas e de biodiversidade com a Amazônia. O volume elevado e regular de chuvas ao longo do ano encharca os solos que abrigam as turfeiras, que concentram mais carbono que a própria floresta. 

Os últimos estudos indicam turfeiras com mais de seis metros de profundidade a poucos quilômetros dos rios e concentram uma reserva gigantesca de Carbono (C), estimada em 1712 toneladas de C por hectare. Somadas, as reservas totalizariam entre 26 a 32 bilhões de toneladas de C no subsolo.





Esse ambiente pantanoso explica a maior concentração da população no interior do Congo. A área da foz do Rio Congo (rio principal da maior bacia hidrográfica africana), que se estende pela fronteira marítima do país com, aproximadamente, 40 quilômetros de extensão, tem baixa densidade demográfica. 

O ambiente lamoso dificulta a ocupação humana no litoral, contrariando uma tendência mundial. Entretanto, esse fato não impede a presença de várias comunidades, que vivem sobre as turfeiras, dependem desse ecossistema e do equilíbrio existente para a sua sobrevivência, além da proteção da flora e fauna regional, entre elas, a maior população dos gorilas-das- montanhas do mundo.

A decisão do governo do Congo pode comprometer um ambiente formado ao longo dos últimos 10 mil anos, mas mapeados, efetivamente, somente a partir de 2017. Portanto, a riqueza que abriga é ainda desconhecida pelo homem. Há um risco que seja destruída sem que a humanidade tenha real compreensão da complexidade que deu origem a esse sistema único nos trópicos.  

Alimentado pelo falso nacionalismo governamental e amparado pela ânsia europeia de encontrar um substituto ao gás russo, o futuro do clima e da própria natureza pode ser mais dramático que o estimado. Há cada vez mais líderes africanos buscando estratégias para um fortalecimento econômico, sem a perda da autonomia sobre seus recursos naturais. O presidente Tshisekedi vai na contramão dessa tendência ao leiloar seus campos de petróleo e gás.  

A pouco crível política de crescimento econômico, voltada para o benefício da sociedade, fortalece as práticas neocoloniais no país.  Nesse jogo, a população foi sequer consultada, nenhuma ação de proteção ambiental foi elaborada, como divulgado há menos de um ano, o que levou a ONU ao regozijo. 





As grandes corporações energéticas, que buscam uma alternativa contra a dependência à energia russa, ignoram os compromissos assumidos no passado de descarbonatar os meios produtivos.  A questão climática e ambiental é substituída pelos interesses econômicos, mantendo o padrão de sempre. 

As economias desenvolvidas, aparentemente, esqueceram as promessas de engajamento com políticas e ações de combate ao aquecimento global. Salvar o estilo de vida, baseado no consumo intensivo de carbono, é considerado prioritário, é uma grande contradição. É como se despertos, continuássemos dormindo. Nada de novo debaixo do sol.