Jornal Estado de Minas

COLUNA

Reservas cambiais revelam ajuste com raízes no trabalho de Reis Velloso

O destaque especial da entrevista que concedi ao brilhante Armando Ourique, na revista “Poder” de fevereiro último, foi constatar a salvadora e inédita acumulação de reservas em divisas, hoje entre US$ 350 e US$ 400 bilhões, juntamente com a zeragem da dívida pública externa líquida (dívida menos reservas).


A surpreendente folga do caixa em dólares tenderá a se manter, graças ao profundo ajuste estrutural setorial obtido nos últimos anos, em boa medida pelas políticas implementadas ou apoiadas lá atrás por meu irmão mais velho, Reis Velloso, que, ministro do Planejamento por 12 anos, se vivo fosse completaria este mês 90 anos.

Após sair do governo, Velloso criou em 1988 o Fórum Nacional, que hoje presido, um conjunto de eventos de que sempre participei ativamente, com o ambicioso objetivo de promover um amplo debate sobre temas relacionados com a economia, a organização política e as condições sociais do país.

Com a humildade que sempre o caracterizou, Velloso jamais usou o fórum para defender suas várias gestões, e, findo o Governo Geisel, praticamente se afastou da mídia. Quando lhe cobrava posicionamentos em sua própria defesa, dizia sempre que essa seria uma tarefa para os mais novos...


 
Voltando ao princípio, o ponto com que João Paulo, que tinha uma verdadeira obsessão por questões de prazo mais longo (algo com que hoje quase ninguém se preocupa), e eu concordávamos plenamente em nossas últimas discussões a dois, era o importante significado de termos, ao cabo de muitos anos de luta e algo ainda pouco percebido, retirado das nossas mazelas o chamado “pecado original”, conforme define a literatura econômica internacional, que ocorre quando, por escassez de divisas, se tem dívida pública com estrangeiros em uma moeda que o país não emite.

Nesse caso, quando aqueles, por alguma razão, se recusam a “rolar” nossa dívida pública em dólares, o país pode se ver forçado a adotar medidas de ajuste duras com bastante sacrifício para sua população, algo que pode decorrer de uma avaliação desfavorável do xerife FMI. O chocante é que algo nessa linha ocorre hoje com base na política oficial, mesmo sem o país sofrer mais do tal pecado original.

E vejam o contraste: eu mesmo acompanhei dirigentes da área econômica, nos anos 80, tentando fechar o overnight internacional do país em ligações telefônicas para pequenos bancos no interior dos Estados Unidos, quando tínhamos quebrado completamente. E termos hoje um caixa sustentável dessa magnitude é realmente chocante para quem atuou naquela época.



Em contraste com a Argentina, e como destacou o colega André Lara Resende (“Valor” de 11/12/20), “hoje o Brasil é autossuficiente em petróleo e trigo, tem um setor agropecuário altamente superavitário, a Conta-Corrente do Balanço de Pagamentos caminha para o equilíbrio, e o país acumulou o equivalente a mais de 30% do PIB em reservas internacionais.”

Aqui, adicionaria a autossuficiência ou excedente de oferta de outros insumos intermediários básicos, como papel, celulose, fertilizantes, metais não-ferrosos e insumos siderúrgicos, todos objeto de pesados programas de substituição de importações sob o II PND, comandado por Velloso, que teve ainda participação decisiva no apoio à Petrobras, na criação da Embrapa e no Programa dos Cerrados, que contribuíram para tornar o país um dos o principais players na área de commodities agrícolas e minerais.

Dados relevantes sobre produção física, importações e produtividade que vale a pena salientar são os seguintes: a) na produção de petróleo, aumento de 507 vezes, de 6 mil para 3 milhões de barris-dia entre 1955 e 2020; b) da produção de grãos: de 77,7 para 223,4 milhões de toneladas, entre 1995-98 e 2015-18, com a área utilizada subindo ao mesmo tempo de 36,4 apenas para 60,8 milhões de ha.; c) queda de US$ 3,5 para US$ 1,8 bilhão em 1974-78, nas importações dos demais insumos básicos acima citados, após terem subido de US$ 0,3 para US$ 3,5 bilhões em 1966-74.



Mas foi assim imbuído do “espírito FMI” que o atual governo resolveu adotar o “teto de gastos” herdado de Temer, entre outras ações fora de propósito, e que o ministro da Economia tenha dito ao Congresso, em março de 2020, que “aniquilaria a pandemia com apenas 3 a 5 bilhões de reais”, embora hoje se saiba que, na prática, e por imposição congressual, isso depois viraria algo bem maior que R$ 150 bilhões... (“Veja” de 12/06/20).

Sabe-se, ainda, que o mundo evoluiu para uma visão bem mais tolerante com emissão de moeda (algo de que, em uma pandemia como a atual, nem se fala...). Ou seja, precisamos, sim, de inversões, mas não necessariamente materializadas em dólares. E, conforme o caso, ainda que contrariando a visão do governo, não necessariamente privadas, pois, em muitas instâncias só investimentos públicos são viáveis.

Para encerrar, na tradição de Velloso de tratar dos problemas com visão de prazo mais longo, cabe atacar o ainda não resolvido crônico déficit previdenciário especialmente de estados e municípios, cuja persistência rouba recursos da rubrica “investimentos” e breca o PIB.