Para galgar ao panteão dos grandes presidentes brasileiros, não basta o feito, em si extraordinário, de ter sido eleito três vezes para ocupar o mais alto posto de comando do país. A história busca, para além de paixão ou simpatia popular, a qualidade de algum vislumbre de futuro que o líder máximo, no seu momento, tenha contribuído para a organização, bem-estar ou dignidade da nação. Uns vencem guerras relevantes; outros liberam grupos de escravaturas; outros ainda, promovem progressos extraordinários. A pergunta fica: pelo que será lembrada a passagem de Lula da Silva?
Com a humildade que um tema de vislumbre de futuro requer, a diferença que Lula fará – creio eu – não virá por um big bang na educação nem da saúde pública, ou por uma revolução administrativa e moral na gestão de governo, por mais que avanços nessas áreas sejam fundamentais e esperados por todos que nutrem alguma esperança de melhoras. Sim, haverá avanços, mas não marcantes a ponto de significar uma virada na história do país. Nem há tempo para tanto em quatro anos que, mal começados, já parecem se esgotar.
Em três campos da atuação de um presidente do Brasil, na presente situação, há boa chance de Lula se destacar. São três transições, no sentido de que ao presidente caberia o papel de condutor de um processo evolutivo forte e rápido, exigindo-lhe grande coragem, tirocínio e senso de futuro. Uma delas é a transição federativa. A segunda, a transição energética. E a terceira, bem mais complexa e difícil, a transição da riqueza social. Lula pode ficar feliz, e terá reconhecimento histórico, se alcançar realizar apenas uma delas. Mas será grande se avançar na direção das três transições ao mesmo tempo. Os três campos se entrelaçam, mas aqui lhes darei apenas uma noção do que se tratam.
A transição federativa é a que fará nascer neste país uma verdadeira Federação brasileira, que ainda não existe. Hoje os estados e municípios atuam como apêndices administrativos e políticos de Brasília. A luta contra a COVID-19 acendeu uma luz sobre a autodeterminação de governadores e prefeitos. Pela negativa, ao deixar o abre-fecha por conta destes, o governo Bolsonaro mostrou que o poder local tem vez e voz. Mas há um problema: estados e municípios estão pendurados financeiramente em Brasília. A força do tal Centrão, em grande parte, advém disso. E não há como reverter o nefasto centralismo de Brasília sem um expediente de inteligência. Isso passa pela liberação financeira dos entes federados, por meio de um Plano Brady de troca das dívidas destes junto ao Tesouro Nacional, com os deságios apurados, e colocação dos novos papéis junto ao mercado privado. Ocorreria uma revolução financeira no dia seguinte, com investimentos para todos os lados. E essa revolução de independência federativa seria completada pela incorporação, numa reforma tributária, de todos os fundos federativos como receitas fiscais próprias dos entes federados.
A segunda transição brasileira se dará não só pela passagem de energia suja (fóssil, mineral) para mais limpa (hidrogênica, eólica, solar) como também de energia mais cara para mais barata. A indústria brasileira estaria na base dessa revolução de eficiência energética e comedimento tributário. O tema é vasto, mas tem como fazer. Curiosamente, por motivos transversos, o governo que se vai deu o passo fundamental ao trazer as alíquotas tributárias sobre energia e combustíveis para uma faixa de normalidade. Não há que se recuar desse avanço importante. Petrobras e Eletrobras podem ter, no futuro, um destino comum, como empresa de energia do Brasil. Lula não pode errar na escolha do seu ministro para a área.
A terceira transição diz sobre como superar tudo o que temos sido há séculos: uma nação de chocantes desiguais; uns com muito, muitos com quase nada. Não falo só de rendimentos, mas de riquezas altamente concentradas. Inclusive as na mão do Estado, o grande usurpador da propriedade social. Mas tem remédio, se a riqueza inoperante, ainda na posse estatal, for canalizada para dar lastro para o grande débito do Estado brasileiro com seus vassalos: a Previdência Social. A capitalização do Fundo Geral da Previdência (de que quase ninguém sabe da existência, por não representar nada) é providência essencial. Tal capitalização pode ser feita com relativa rapidez e alcançaria provocar uma grande revolução na poupança nacional, ao estimular as pessoas desta sofrida Nação a sair da constrangedora condição de super-endividados para uma de poupadores e detentores de parte do capital social produtivo. De um país de assistidos, para um grande time de trabalhadores vencedores.
Estaria sonhando? Quem sabe. Afinal é Natal, advento de coisas novas, nascimento de possibilidades esperançosas. Afinal, só o sonho nos faz sobreviver. Feliz Natal.