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O lado amargo da vida

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Todo ano é a mesma coisa. As chuvas chegam. E, com elas, inundações, deslizamentos, mortes nas estradas, famílias desabrigadas. É a época do desamparo e da tristeza. A tevê mostrando sofrimento, casas destruídas, corpos soterrados, rompimento de barragens.



Não adianta mudar de canal. A dor já se instalou, dona absoluta do resto da noite. Mas, se todo ano acontece por que sempre acontece de novo?

Perguntamos e ninguém responde: se não é permitida a construção de casas em encostas de morro e áreas de risco, por que se permite? Este país não toma mesmo jeito e não aprende a respeitar uns e outros, nós e vós, tu e eles. É a lama, é a lama, é a lama...

Agora, depois de tanto tempo, a chuva brinca na vidraça sem o menor pudor em se transformar em incômodas goteiras dentro de casas simples, modestos barracos no morro que pagam caro para verem a lua pela fresta do telhado em noites estreladas. Milhares de pessoas desabrigadas na Região Metropolitana de BH, asfalto cedendo na rodovia Fernão Dias.

Brasileiros que habitam este mesmo Brasil vivendo momentos tão difíceis que é impossível imaginar que sejamos irmãos neste país tropical. A todo momento repórteres encharcados informando mortes, desaparecidos, desespero, os alagamentos nas cidades, crateras interrompendo rodovias. A chuva que cai na tela da tevê tem sido chuva de dor e sofrimento.





Tento pensar na chuva companheira, a embalar as madrugadas de sono, na chuva que faz nascer o pasto verde nas fazendas, pensar nos agricultores há tempos esperando pelas chuvas nas lavouras, os pés de manga agradecendo a água. Agora na tela está uma brasileira, personagem tão perto da nossa intimidade. Ela entrando sem mais nem menos na nossa casa, mostrada pela repórter a cozinhar para a família com água até os joelhos. Tem os dias de temporal, árvores caídas nas calçadas, carros arrastados pela enxurrada.

Grupos organizados, fiéis bondosos reunidos em igrejas que arrecadam donativos, roupas de cama, móveis e panelas para entregarem a quem teve a casa inundada pelas enchentes ocorridas em cidades mineiras, já se antecipando novas tragédias. Técnicos avisam que virão aguaceiros e trovoadas – para todos, sem escolher onde pode doer mais.

Há que se ter um jeito de dar jeito nessa situação. A solidariedade também jorra em abundância. É cada um dando a mão que faremos um cordão para ajudar o outro irmão. O ano novo começa pedindo a proteção do Senhor, que só Ele nos ajuda a ter devoção e fé levando uma gente boa e simples a buscar o amparo dos santos.





Anos atrás, na madrugada de um domingo, um forte estrondo no prédio fez os moradores descerem escada abaixo antes que os dois blocos de apartamentos se esfarelassem no chão em questão de minutos. Foram-se pedaços da história, a varanda de frente para a praça, o jarro de porcelana, as escrituras, o carrinho do bebê, a caixa de veludo com os documentos, os momentos da lua de mel no pendrive, as taças de cristal.

Como um castelo de areia, desabaram bens, roupas, móveis, a foto da primeira comunhão, coisas sem importância e coisas amadas, repletas de afeto. Os moradores foram alojados em hotéis, dividindo as dores uns com os outros, vítimas de uma tragédia que os deixou sem casa e sem lembranças.

E nosso amigo não passava uma semana sem ir ao local, horas ali encurvado entre os escombros, escavando tesouros moídos no meio das ferragens e do cimento. Um dia percebeu: o apartamento desabara, não ele, nem sua mulher. Eles tinham recebido a graça de continuar vivendo. O olhar deveria ser não para baixo, mas para o Alto. E ficou de pé.

Nunca mais recuperou o apartamento e percebeu que a construtora nada devolveria. Eles foram deixando o susto, o sofrimento, a correria nas escadas, custando a se esquecer do lado amargo da vida. Fizeram tudo de novo e construíram uma nova história, outro lindo álbum de lembranças.

Hoje, ele roda o Brasil dando palestras sobre como superar o impossível. Tenta mostrar como transformar terreno de dor em canteiro de flor. Plateias as mais diferentes aplaudem este mineiro que aprendeu a deixar o passado no passado. Ao invés de contar lágrimas, conta bênçãos.