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Atravessando o deserto

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Nesta época do ano em que os católicos vivem a quaresma, fala-se muito em deserto por estar associado aos 40 dias que Jesus passou no deserto antes de iniciar a vida pública, além de outros episódios ligados ao número 40 nas Sagradas Escrituras, como os 40 anos de travessia dos israelitas na fuga do Egito.



O deserto faz parte da rotina dos nossos dias, mesmo os brasileiros não tendo intimidade com ele. Há sempre alguém atravessando um deserto no meio de nós. Um deserto com areia até onde a vista alcança. Altas temperaturas que podem provocar insolação, tempestades de areia que duram horas e, às vezes dias, solo árido habitado por serpentes, lagartos e insetos, com lagos rasos, temporários e salgados.

A angústia por um amor perdido, a traição do amigo, a perda do emprego, um diagnóstico médico nebuloso levam muitas pessoas para o deserto. Pode ter um sol brilhando lá fora ou a chuva escorrer pelo vidro da janela, a família trocando segredos na sala, a pessoa nem vê – está no deserto enfrentando os dias de tormenta.

Deserto pode ser dor, amargura, solidão, uma solidão que vai até onde a alma alcança. Mas não precisa ser assim, precisa? Podemos colocar no deserto cactos suculentos que armazenam água e fornecem ninhos às aves, plantas como as ervilhas e o girassol, além da tamareira, a palmeira dos frutos deliciosos. E um oásis com vegetação alimentada por fontes subterrâneas ou poços, aproveitando a proximidade com alguma nascente de água doce, a oferecer ainda o frescor da sombra.



Se entrar no deserto é inevitável, depende de cada um como entrar. Cristo entrou por decisão própria, para fortalecer corpo e espírito. Enfrentou três tentações do demônio e venceu todas as batalhas. Vez ou outra também precisamos entrar no deserto. Sem medo da solidão ao redor, do silêncio que chega a ser tão denso que, segundo um escritor espanhol, “machuca os ouvidos”. Pisar no chão de pedras que podem ferir, ter fome e sede antes de chegar ao oásis. Passar por tribulações fortalece e prepara para a amargura que vem antes da doçura, mostra que não há só fel no deserto, pois sempre cai um maná com gosto de bolo de mel.

De qualquer forma, deserto é lugar de encontrar-se consigo mesmo com coragem para vencer os desafios. Tornar a vida que parece um fardo um mérito. Saber ver e entender o imenso silêncio do lugar e escutar o que está ao seu redor e dentro de você. Caminhar como se lá na frente estivesse surgindo uma nascente de alegrias futuras. Aproveitar a imensidão da planície para descobrir horizontes antes desconhecidos.

Todos nós atravessamos um deserto, vez ou outra. Ou porque ele aparece inexplicavelmente, ou porque nós próprios precisamos dele, para uma verdadeira metanoia, ou seja, para vivenciar um novo modo de ver a vida, ou, para os cristãos, para um arrependimento ou conversão.



Interessante como um local com tal amplidão seja um convite ao recolhimento. É bonito observar um brasileiro vendo o deserto pela primeira vez. Em duas horas de ônibus até o Mar Morto, em Israel, de um lado o mar e do outro o deserto, os areais escaldantes monopolizam a atenção. Ao movimento das águas, os olhares preferem a solidez das dunas. O deserto comove.

E dá exemplos ao transformar em vida suas características geológicas e climáticas que tornavam impossível o cultivo da flora e da fauna. Os obstáculos foram vencidos com a dessalinização e o gotejamento, onde mangueiras plásticas cheias de microfuros gotejam água dia e noite, propiciando o crescimento extraordinário das plantas apesar do solo árido.

Enquanto a natureza criava plantas que iam se transformando para se adaptar ao clima, e tem animais como os camelos, que podem passar horas sem água, algumas culturas fizeram dos desertos quentes o seu lar, como os beduínos e os tuaregues. Se a natureza soube se reinventar e homens e mulheres sabem ser felizes com muita areia e pouca água, não seremos nós que chamaremos o deserto de hostil.

Nosso deserto fica no coração. Nele devemos depositar esperança, fé e otimismo. Mesmo que seja gotejando dia e noite, noite e dia.