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Estado de Minas ENTRE LINHAS

Sobre a águia e o dragão no isolamento diplomático do Brasil

Se tem uma coisa que falta ao governo Bolsonaro é política externa independente e pensamento estratégico. O alinhamento com Trump foi o melhor exemplo


08/11/2020 04:00 - atualizado 08/11/2020 07:24

O ministro Ernesto Araújo com o presidente: diplomacia brasileira pode ficar isolada com eleição de Joe Biden nos EUA(foto: Marcos Correa/PR/AFP - 26/3/20)
O ministro Ernesto Araújo com o presidente: diplomacia brasileira pode ficar isolada com eleição de Joe Biden nos EUA (foto: Marcos Correa/PR/AFP - 26/3/20)

 

– Espera! – exclamou Ega. – Lá vem um “americano”, ainda o apanhamos.

 

– Ainda o apanhamos!

 

Os dois amigos lançaram o passo, largamente. E Carlos, que arrojara o charuto, ia dizendo na aragem fina e fria que lhes cortava a face:

 

– Que raiva ter esquecido o paiozinho! Enfim, acabou-se. Ao menos assentamos a teoria definitiva da existência. Com efeito, não vale a pena fazer um esforço, correr com ânsia para coisa alguma...

 

Ega, ao lado, ajuntava, ofegante, atribulando as pernas magras:

 

– Nem para o amor, nem para a glória, nem para o dinheiro, nem para o poder...

 

A lanterna vermelha do “americano”, ao longe, no escuro, parara. E foi em Carlos e em João da Ega uma esperança, outro esforço:

 

– Ainda o apanhamos!

 

– Ainda o apanhamos!

 

De novo a lanterna deslizou e fugiu. Então, para apanhar o “americano”, os dois romperam a correr desesperadamente pela rampa de Santos e pelo Aterro, sob a primeira claridade do luar que subia.

 

(Os Maias, Eça de Queiroz, 1888)

 

Essa alegoria do escritor português que tanto influenciou nossa literatura encerra um grande “afresco” literário sobre a atávica e parasitária elite lusitana e a situação de estagnação de Portugal no final do século 19. Serve sob medida para a situação em que se encontram o presidente Jair Bolsonaro e seu ministro das Não Relações Exteriores, Ernesto Araújo, que agora correm atrás do prejuízo como a dupla Carlos Maia e João da Ega, por causa da vitória de Joe Biden, candidato do Partido Democrata nas eleições para a Presidência dos Estados Unidos. O presidente Donald Trump, um demagogo tresloucado que ocupou a Casa Branca por 4 anos e levou muitos a acreditarem no naufrágio da civilização ocidental, foi escolhido por ambos como aliado incondicional. Entretanto, mais uma vez, a democracia americana se recuperou de um desastre político e retomou o seu curso histórico.

 

No mundo globalizado – traumatizado por uma pandemia que já matou 1,4 milhão de pessoas, a recessão dela decorrente e o aprofundamento das desigualdades –, falta uma autoridade moral, portadora de valores universais capazes de influenciar a marcha da História, à qual a sociedade contemporânea possa recorrer. O Velho Mundo, com suas ideias iluministas e protagonista da história mundial do século 15 ao 19, hoje não é o candidato natural a essa posição. Somente os Estados Unidos podem exercer esse papel de liderança global nos fóruns internacionais, pela universalidade de seus fundamentos políticos, sua composição étnica e multiculturalismo, além do inegável poder que adquiriu no século passado, após vencer duas guerras mundiais e a Guerra Fria. Nenhum outro país reúne, simultaneamente, capacidade de produção industrial, força militar, pesquisa científica, conhecimento, tecnologia e influência política e cultural para isso.

 

 

Marisco

Misógino, homofóbico e chauvinista, Trump havia abdicado desse protagonismo, lançando os Estados Unidos na contramão da História. Mas é um erro supor que tudo começou com o republicano. Na verdade, o erro histórico dos Estados Unidos foi continuar a tratar os vencidos na Guerra Fria – a antiga União Soviética e os países do Leste Europeu – como inimigos a serem humilhados, espoliados e isolados politicamente. É esse hegemonismo truculento que está na gênese do trumpismo, marcadamente após a Guerra do Iraque, com o seu intervencionismo para derrubar regimes e refundar nações, alterando abruptamente a geopolítica de regiões inteiras. O ponto de inflexão dessa política, porém, foram os fracassos nas tentativas de derrubar os governantes da Síria, Bashar al-Ashad, e da Venezuela, Nícolas Maduro, por subestimar o poder de intervenção militar da Rússia e a emergência da China como potência econômica e diplomática.

 

No seu livro Sobre a China, Henry Kissinger, ex-secretário de Estado norte-americano, que no governo Richard Nixon negociou com êxito o restabelecimento das relações dos Estados Unidos com os chineses, chamou a atenção para o fato de que as duas guerras mundiais do século 20 resultaram de uma disputa pelo controle do comércio mundial por uma potência continental, a Alemanha, e uma potência marítima, o Reino Unido, no Atlântico. Agora, o eixo do comércio mundial se deslocou para o Pacífico e a disputa continua sendo entre uma potência continental e uma marítima: China e os Estados Unidos, respectivamente. É preciso evitar que essa guerra comercial não se transforme numa guerra quente, não se cansa de advertir Kissinger, o ex-diplomata hoje nonagenário.

 

O erro estratégico de Bolsonaro e seu não chanceler, Ernesto Araújo, foi acreditar que o isolamento diplomático em que o país mergulhou, por causa de uma agenda negacionista, reacionária e antiambientalista, seria compensado pela aliança imediatista, não com o Estado norte-americano, mas com o presidente Trump. Deu errado. A águia do Norte novamente alçou voo em busca da liberdade, mas o dragão chinês, nosso principal parceiro comercial, espreita o processo em curso antes de estrugir labaredas de fogo. A China dispõe de recursos humanos e financeiros, capacidade industrial e tecnologia para sustentar essa disputa por longos anos. O maior desafio para a diplomacia brasileira é não virar marisco nessa disputa, que continuará com Biden, em outros termos. Bolsonaro colecionou agressões aos chineses, que pacientemente observam o curso de nossas relações com os Estados Unidos. Se forem toscamente discriminados, como no caso do 5G, vão se reposicionar política e comercialmente. Se tem uma coisa que falta ao governo Bolsonaro é política externa independente e pensamento estratégico. O alinhamento com Trump foi o melhor exemplo.

 

 

 

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