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Vale a pena torcedor correr riscos pelo futebol?

'Desde domingo, muita gente que ainda resistia desistiu. Atleticanos e cruzeirenses apaixonados pelo time, porém desiludidos com o que significa ir a campo'


postado em 15/11/2019 04:00 / atualizado em 14/11/2019 21:54

Confronto no Mineirão, após o empate por 0 a 0 entre Cruzeiro e Atlético, fez muito torcedor decidir não mais ir ao estádio (foto: Alexandre Guzanshe/EM/D.A Press)
Confronto no Mineirão, após o empate por 0 a 0 entre Cruzeiro e Atlético, fez muito torcedor decidir não mais ir ao estádio (foto: Alexandre Guzanshe/EM/D.A Press)

 O ano não vem ao caso. Mas eram aqueles tempos em que a gente ainda não sabia do que se tratava o termo “torcida única”. Não existia futebol sem torcedores dos dois times nas arquibancadas. Um cenário assim era impensável, no sentido literal da palavra. Ninguém cogitava. Mais do que isso: ir ao estádio era um dos programas de família nos domingos à tarde. Lembro-me de várias vezes ter trocado brincadeiras ao lado dos amigos para seguir para o Mineirão com meu pai. Era vê-lo tirar o carro da garagem que eu largava o que estava fazendo e pedia para ir junto. A Catalão engarrafada me encantava. Torcedores cantando, empunhando bandeiras, ônibus lotados. O futebol era aquilo, simplesmente futebol.

 

Eu devia ter uns 11, 12 anos. Comprávamos o ingresso na hora, não existia venda por internet (nem internet havia!), progama de sócio-torcedor, essas modernidades. No máximo, ser associado do clube de lazer do time. Em dia de jogo cheio, meu pai me deixava em um canto perto das bilheterias e ia para a fila. Ele se perdia no mar de gente. Eu ficava por ali, próxima aos canteiros, tranquilamente aguardando. Ninguém importunava. Aí meu pai aparecia e entrávamos no estádio.

 

Volta e meia, encontrávamos, já dentro do Mineirão, uma senhora no alto dos seus 50, 60 anos, que morava na mesma rua que a nossa. Ela levava sua almofadinha, seu radinho, e ficava lá, às vezes sozinha, às vezes acompanhada do marido e do filho, assistindo ao jogo. Eu adorava vê-la ali.

 

Era surgir algum princípio de confusão na arquibancada que meu pai, ainda com os olhos grudados no campo e o radinho no ouvido, me pegava pela mão e a gente buscava outro lugar, mais adiante, para ver a peleja em paz. Quando o cronômetro do estádio passava dos 40min do segundo tempo, ele começava a ficar inquieto para ir embora. Nunca esperávamos o apito final. Em dias de confronto muito emocionante, ficávamos de pé, já perto da escada de acesso ao anel interno, acompanhando os últimos lances: mais meu pai do que eu, que, devido à baixa estatura, ficava com a visão prejudicada do campo e só ouvia os gritos da torcida.

 

Assim que ele dava o sinal, a gente corria em direção à saída, para deixar o Mineirão antes que a multidão (os jogos naquela época reuniam fácil 50 mil pessoas) tomasse conta do estacionamento e o trânsito se complicasse. Essa corridinha era outro momento que eu adorava. Entrávamos no carro e meu pai logo ligava o rádio na Itatiaia, para ouvir os minutos finais do jogo.

 

São lembranças guardadas na minha memória por décadas e que ainda hoje me emocionam. Cenas que me forjariam como profissional, anos mais tarde. Aprendi ali a gostar de esporte em geral, e mais especificamente de futebol. Eu era a menina que os coleguinhas da escola viam no Mineirão aos domingos e por vezes tentavam, em vão, fazer piada com isso. “Ela gosta de futebol.” Eu dava de ombros para eles, afinal, gostava mesmo. Na faculdade, virei a colega que discutia futebol com os homens. Assim fiz meus mais fiéis amigos: Alexandre, Cláudio e Rodrigo. Essa afinidade com campos e quadras não está no sangue apenas por herança – devo ao meu pai a iniciação esportiva na prática. É ele, o sr. Humberto, o responsável, direta e indiretamente, por muitas das linhas de Tiro Livre.

 

É pena que muita gente, crianças e adultos, não tem a oportunidade de viver tudo isso que vivi. Não porque não querem. Porque ir ao estádio, hoje, assusta. Já vai um bom tempo que meu pai desistiu de ir ao campo. Dificuldade para comprar ingressos, estacionar, entrar e sair do estádio, receio de violência. Ele prefere assistir de casa. E não está só.

 

Desde domingo, ouvi muita gente que ainda resistia desistir. São atleticanos e cruzeirenses apaixonados pelo time, porém desiludidos com o que significa ir a campo, os riscos envolvidos. Um deles se viu, ao lado do filho, em meio a gás de pimenta e policiais atirando bala de borracha para todo lado no Mineirão. “O que passei lá não vale a pena. O futebol é uma coisa muito besta para passar por isso. E os clubes não estão nem aí”, disse, traumatizado pelo que viveu.

 

Os dirigentes decidiram voltar com a torcida única no clássico, medida adotada em Minas em 2010, com o fechamento do Mineirão para reforma visando à Copa do Mundo de 2014. O primeiro argumento é o da segurança. Mas, a partir do momento em que facções de uma mesma equipe brigam entre si (o que tem ocorrido com frequência em jogos do Cruzeiro), tal justificativa cai por terra. No Rio, a forma covarde como um torcedor do Botafogo foi agredido por outros botafoguenses na arquibancada do Engenhão, há uma semana, é outro exemplo. Não há segurança nem entre aqueles que se dizem iguais.

 

Daqui a uns dias, alguém vai sugerir, em nome da segurança, que no estádio haja só jogadores e o trio de arbitragem. Arquibancadas vazias. Quem sabe, um futebol sem árbitro e sem jogadores, apenas por garantia. Quiçá, por segurança total, um futebol sem futebol.

 
 

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