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Coronavírus e a graça do viver

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Março seria o mês das minhas férias. Com Virginia, minha mulher, chegamos aos Estados Unidos no dia 6 para reencontrar uma das filhas, o genro e as duas netinhas americanas. Tallahassee, capital da Flórida, no norte do estado, perto da Geórgia e do Golfo do México, onde vivem, é uma cidade de menos de 200 mil habitantes, infraestruturas excepcionais, três universidades, com 52 mil alunos. Meu genro, PhD em Musicologia por Harvard, é professor concursado na universidade estadual da Flórida. A região é densamente arborizada, com predomínio de carvalhos de diferentes espécies. Lagos por todo lado. A culinária é a do sul tradicional dos Estados Unidos, semelhante à do Mississipi, Tennessee, Alabama, Geórgia. Um prato apreciado é um assado de camarão (enorme) recheado com a carne da pata de caranguejo, e isso envelopado em bacon. Porco assado com molho de barbicue também é muito apreciado. A trindade indígena: feijão, abóbora e milho é o feijão (cinza com “olha preto”) com arroz – também muito apreciados – do sul. A região era o habitat da nação Seminole, a única insubmissa. Resistiu ao cerco do governo e, adiante, obteve os melhores acordos de garantias de direitos. Os Seminole vivem em reservas e mantém cassinos. Dispõem de alta renda. Planejávamos percorrer o sul da Geórgia. Depois, conhecer New Orleans. De outra vez.




Tallahassee é uma cidade onde é impossível viver sem o uso constante do automóvel. As pessoas encontram-se nas universidades e demais locais de trabalho, em eventos, visitando-se ou programando passeios. É claro, como as aulas, tudo está suspenso. Os parques são lindos e a visita ao litoral do Golfo do México é imperdível. A cidade é absolutamente espalhada. Há condomínios abertos por todo lado. O imóvel da casa da minha filha e genro tem área de quase de 1 hectare. Sob confinamento, isso oferece ampla proteção, como barreira natural à exposição ao vírus. Daí a insistência da filha e do genro para que a nossa permanência entre eles se estendesse por três ou quatro meses, até que a curva de expansão da pandemia alcançasse o pico e ou do “contágio sustentado” nos Estados Unidos, estimado para o final de abril, e também no Brasil, projetado para o final de maio, podendo estender-se ao mês de junho. Poderíamos dispor do benefício do plano de saúde deles. Lá, não existe algo semelhante ao SUS ou ao sistema de saúde britânico ou francês. Portanto, o argumento da permanência por lá era atraente e consistente. Contudo, antecipamos o retorno em uma semana. Estamos em casa, em Belo Horizonte, desde 23 de março. Saímos dos Estados Unidos na semana de início da expansão exponencial do contágio. Sabíamos do risco durante a viagem internacional de regresso. Decidimos pelo confinamento em nossa casa. Sou secretário municipal de Obras e Serviços Urbanos de Contagem, cidade de 660 mil habitantes. Desde o retorno, a videoconferência passou a fazer parte do meu dia a dia.  


Ainda nos Estados Unidos, falamos com a outra filha, que há anos vive na França, em Paris. Temos duas netinhas francesas. O ramo francês da família estava, e permanece, literalmente confinado ao espaço do pequeno apartamento, situado próximo ao Marché D’Aligre, três quadras da Bastilha. A perspectiva por lá é de confinamento domiciliar geral pelo menos até o final de abril, quando o topo da curva de expansão do novo coronavírus deverá ser alcançado, dando início ao gradual movimento de reversão. Na França, o confinamento se fez política de Estado como meio de prevenir o alastramento exponencial da pandemia. O governo do presidente Macron agiu com coragem, rapidez decisória, bom planejamento e altíssima prioridade na defesa da vida: uniu o país em torno da liderança presidencial. Na Itália, desde o início da expansão do novo coronavírus inexistiu o governo nacional. Ao ponto dos governos locais das ricas regiões da Lombardia e do Piemonte, ao norte, permanecerem sob a orientação do prefeito da rica cidade de Milão, responsável pelo lançamento da campanha “Milão não pode parar”, de conclamação para que os cidadãos continuassem a frequentar os locais de trabalho, estudo, lazer, restaurantes, bares, teatros. Essa campanha começou em 24 de fevereiro. Um mês depois, perto de 120 mil italianos internados e mais de 11 mil mortos no país e sobretudo no norte rico, o prefeito pediu desculpas aos cidadãos, encerrou a campanha e adotou o confinamento domiciliar geral. A Itália já registra mais mortos do que na própria China, com seu 1,5 bilhão de residentes. O confinamento agora é total.


Na França, Macron antecipou-se certeiramente e não cometeu o grave erro dos governantes italianos. Há três semanas, o primeiro-ministro inglês, ostensiva e intencionalmente, distribuía cumprimentos públicos. Voltou atrás, desculpou-se publicamente e está com coronavírus, ele e o ministro da Saúde inglês. Macron fez o que é certo, desde o início. Exemplo: no mesmo prédio onde vivem a minha filha e sua família, a minha netinha de 6 anos de idade, Helena, não pode ter contato direto, físico, com a amiguinha da mesma idade, residente um andar abaixo. Conversam pelas janelas, a um andar de distância. É confinamento total, geral. Meu genro, psiquiatra e psicanalista, está convocado para prestar serviço também como clínico e médico generalista. A sudeste, está a Itália; a sudoeste, a Espanha, em situação, hoje, semelhante à da Itália. Na França, médicos já convivem com o infortúnio das “escolhas de Sofia”, decidindo, vez por outra, entre pacientes graves qual terá a última vaga disponível no CTI.




O presidente Macron decide e age como estadista. Impopular até há pouco tempo, hoje, pelo modo como lidera o país na contenção e controle da pandemia, todo dia, ao final do entardecer, ele e os médicos franceses são homenageados pelos sempre críticos parisienses com um espetáculo espontâneo de palmas e de pisca-pisca nos apartamentos dos prédios de cinco a seis andares, espalhados por Paris. A primeira-ministra da Alemanha, Angela Merkel, bem ao contrário das demonstrações iniciais de despreparo afrontoso do presidente americano Donald Trump, distingue-se pela inteligência, elevação de espírito, coragem moral e rigoroso compromisso com a verdade. A Alemanha está controlando a epidemia com a máxima proficiência para aplicar, em escala, testes de detecção e com perfeita organização dos serviços hospitalares. Lembre-se, leitor, que Angela Merkel decidiu, contra a maioria da opinião pública alemã, abrigar e oferecer cidadania a 1 milhão se sírios refugiados em razão da guerra civil que infelicita a Síria.


Trump odeia fatos, verdade, evidência, argumentos, conhecimento, racionalidade e cultura, entendida como uma capacidade de orientação geral. Até uma semana atrás, prosseguia notabilizando-se por sucessivas performances desastrosas diante da TV. Nos Estados Unidos, Trump na TV foi um desastre. O fato que fica é que, há uma semana, precisamente, a infecção pelo novo coronavírus explodiu nos Estados Unidos, primeiro na Costa Leste e na Costa Oeste. O fato notável que agora se fixa é que Trump mudou, da água para o vinho, pelo menos no que concerne ao novo coronavírus. Determinou a alocação de US$ 2,3 trilhões para enfrentar a crise em suas dimensões sanitária, social de emprego e renda, econômica de sustentação da atividade e de provisão de empréstimos subsidiados e de longo perfil. Parece um outro Trump. O presidente americano está tomando decisões no melhor estilo Frank Delano Roosevelt, que fez o “New Deal” e tirou os Estados Unidos da Grande Depressão de 1929. Na forma de inversão pública de dinheiro, liberou cerca de 12% do PIB americano para enfrentar a crise. Parece ter adotado, ainda que parcialmente, até mesmo uma das propostas políticas do senador socialista do Partido Democrata, Sanders, de anular a dívida dos estudantes americanos com os bancos que financiam os estudos superiores.


Enquanto o mundo age assim, no caso brasileiro o sentimento que o presidente comunica é o sentimento de vergonha! É isso: o presidente Bolsonaro nos faz sentir vergonha. Pelo menos, uma boa nova vinda de Brasília. Na quarta-feira, depois de quase vender a alma ao diabo, ao vivo, pela TV, o ministro da Saúde, o médico Mandetta, parece ter assumido virtuosamente, de fato, o comando nacional da política de combate ao coronavírus. Escolheu a companhia da razão, da ciência, da melhor técnica de planejamento e a cooperação ampla. Escolheu a companhia dos governadores, dos prefeitos das capitais e das comunidades científica e médica. Enquanto isso, o diabo anda solto no meio do redemoinho! A novidade é que, a partir de agora, sob contenção!