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ARTIGO

Os corpos encantados das ruas: o encontro da dissidência

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O encontro dos corpos dissidentes e das ruas é explosivo. Tanto que me fez ter o desejo de vir aqui escrever - rapidamente - numa tentativa vã de apreender um pouco do que se observa na experiência de partilhar o espaço público e ocupá-lo, como se, de fato, ele fosse seu. Nas encruzilhadas que se apresentam, aqui estamos nós, ocupando. 





Ando sumida e para você leitor que ainda não sabe ou está chegando agora, além de escrever esta coluna, trabalho também com eventos e, nos últimos tempos, foram vários deles. Tantos sobre a experiência dos corpos - e de corpos como o meu - ocupando o espaço - ou espaços, que resolvi falar sobre isso aqui. 

Quantas vezes você está nas ruas, em locais públicos e se depara com uma ocupação? Em quantas encruzilhadas você para? Em quais você ouve? Como você percebe a ocupação? Do que você se ocupa? Quais encontros te atravessam?

Venho falar sobre isso porque me pego atravessada por vários deles! E nessas idas e vindas, pensando em quais novas possibilidades se abrem e quais são as configurações de mundo a partir delas? 

Podemos, com nossos corpos dissidentes, existir nestes espaços que se cruzam e se abrem agora? 

A praça para ser ocupada - e escrita 

Entre os eventos que me vi sumida - envolvida, é verdade - está a Mostra Integrada de Artes (MIA) que ocorreu numa versão pocket durante o Festival de Inverno de Poços de Caldas (MG) onde pude lançar meu livro "gasolina & fósforo", ter uma exposição de frases, ver uma exposição de fotos, projeções em prédios tombados e antigos da cidade, ter Djs tocando e corpos múltiplos dançando e ocupando o espaço com cadeiras de praia, coolers, suas garrafas de vinho, sua própria cerveja, seus próprios corpos à festa que acontecia: pessoas reais, vivendo a realidade, sem que, por trás, houvesse puramente um objetivo econômico, mas, sobretudo, o sonho. 
 
Foi ali, numa sexta-feira à noite, na Praça do Xadrez, que consegui vislumbrar o amanhã. E ele é feito de gente. Gente que deseja. Gente que sonha. Gente que vai para as ruas sem medo de ser o que se é: gente. Gente diversa, gente plural, gente de diferentes partes. Gente ocupando a rua. Gente ocupando os lugares públicos. Gente escancarando que na rua não há curadoria. A arte é para todos, todas, todes. Sim, todes. Com essa flexão de gênero que incomoda tanto alguns.




 

Quem escreve o Brasil

Outro evento que mexeu comigo - e no qual também lancei o "gasolina & fósforo" - é a Ocupa OIA, que aconteceu entre os dias 10 e 29 de julho em São Paulo, em diferentes espaços públicos, livrarias, bibliotecas e bares com encontros de autores para responder, na prática, quem escreve o Brasil. 
 
E ele tem sido escrito, tecido, recitado em muitas vozes. Nas crônicas escritas nas redes sociais da Maya Falks sobre os dias posteriores em que esteve em São Paulo para lançar o "todo mundo gosta de sexo - eu nunca fui todo mundo", nos suspiros cortados pelo real da produtora e poeta Brisa de Souza, autora do "de tanto me deixar levar fiquei à deriva", na voz do poeta e editor Thiago Medeiros com o "dias depois saímos do leprosário, no premiado Dércio Braúna com o "eu talvez desejasse matar poetas", na autoficção de Mário Rodrigues com "O motorista de Mécidi", na sátira de "Perla Stuart, a ex-mulher", escrita por Dionisio Neto, aos contos de "Retalhos Vulcabrás" de Sérgio Anauate. Todas as antologias que dizem imensos brasis que escancaram o que tento - talvez de forma falha - dizer aqui: que nossos corpos ocupem. Ocupem. Ocupem. 
 
E nesta ocupa, passamos por Patricia Jimin dizendo de sua religião afro de agora, dizendo de sua religião neopentecostal de outrora. Com seu corpo gordo, preto, de mulher sapatão. Escritora. Ocupando. 
 
Tom Grito, dizendo poemas, não binariedade, ocupando. Por que, pra mim, ocupar é verbo e sim, funciona se estiver no gerúndio. Se estiver nos encontros. Se estiver nos abraços. 




 
(foto: Bella Pelizzari/Divulgação)
 
 
Jô Freitas empurrando a cadeira de rodas de Raimundo Carrero por São Paulo para almoçar. 
 
Se estiver ocupando as ruas, os cantos, os lugares, as bocas, os microfones, as estantes, as livrarias, o topo dos mais vendidos. Que ocupemos o mundo, que nos é retirado forçadamente. 
 
Falando sobre corpo e ocupação, é inevitável não pensar nela: a acessibilidade. Nestes dias de ocupação por São Paulo, convivendo com Raimundo Carrero, escritor brilhante, precursor das oficinas literárias no país e o único escritor do movimento armorial ainda vivo, que, após um AVC, faz uso de uma cadeira de rodas para se locomover por distâncias maiores e, sendo eu, uma pessoa gorda - e falo bastante sobre a acessibilidade dos corpos gordos por aqui, fiquei mais atenta a estas questões e percebi como a cidade é, de fato, bastante hostil com quem não cabe nela. 

E, sobretudo, com quem não consegue, feito eu, se espremer pra caber. Então, temos no palco um homem que fala com o corpo. Que conta histórias de vida toda à máxima pulsão enquanto se delicia com uma plateia toda ali para vê-lo. Raimundo Carrero fala da sedução do leitor. De como fisgar quem dobra a esquina e fazê-lo ter desejo de permanecer ali, no texto. E conta causos. E casos. Se deixa conhecer. Se permite cativar. Se expande para além do corpo que ali está. E, ali, pode experimentar ser tudo que quiser ser. Inclusive, pode ocupar. 





Mas basta. Fora do palco são elevadores, escadas, degraus. A dificuldade de encontrar um banheiro. Um restaurante próximo. De empurrar a cadeira de rodas. Estamos na maior cidade do Brasil. Estamos com um autor que fala sobre o Brasil. Estamos com alguém que escreve o Brasil. E aqui, celebro a ideia dos editores Carlo Benevides e Thiago Medeiros em realizar uma oficina com Raimundo Carrero e não medirem esforços, junto à toda equipe, especialmente Luciana Escudeiro, para levar o autor à capital paulista. O olhar para autores cujas ideias estão em ebulição, mas o corpo já não responde mais como antigamente é urgente. Não só para autores, verdade seja dita. Para todas as pessoas. 
 
Mas que bonito ver este corpo sendo visto, cuidado e ocupando a cidade. Ecoando as vozes da multiplicidade e da ruptura com normas rígidas que há séculos tentam aprisionar a diversidade humana em caixas estreitas e excludentes. As pessoas LGBTQIA+, os indígenas, as pessoas com deficiência, os negros, as mulheres, todos se unem em prol de um propósito comum: ocupar o espaço público com dignidade e em igualdade.
 
É importante, contudo, reconhecer que essas ocupações também enfrentam desafios. A violência, especialmente a velada, ocorre. Tá no olhar. Na censura que não é dita. Naquilo que não é verbalizado e chamamos loucura. No pacto silencioso que diz: pessoas que ouvem samba trazem cooler para a praça ou quem se interessa por escritores idosos?
 
Ainda sim, nós, os dissidentes, ocupamos. A literatura, as ruas, as páginas. Seguimos escrevendo o Brasil à nossa maneira: dissonante, ruidosamente. 
 
Portanto, caros leitores, quando caminharem pelas ruas de suas cidades, estejam abertos a essa sinfonia de corpos dissidentes que ocupam os espaços públicos com sua luta por igualdade e respeito. Celebremos essas manifestações, pois elas nos recordam que a verdadeira riqueza de uma nação reside na harmonia de suas diferenças. Que cada pedaço de rua seja palco! Que toda existência ocupe. 
 
Somos estes, os corpos encantados das ruas. Encruzilhemo-nos.