Jornal Estado de Minas

COMPORTAMENTO

Você contrataria uma pessoa gorda?

"É bem gordinha, chega falando que dá conta do serviço e não dá". Essa foi uma das mensagens escrita por uma suposta empregadora de babás e empregadas domésticas em um grupo de WhatsApp de moradores de um condomínio de luxo em São Paulo (SP). A denúncia foi feita pelo Repórter Brasil na quinta-feira (25). Há ainda mensagens sobre intolerância religiosa. 





As mensagens trocadas entre as patroas relataram que as trabalhadoras teriam "problemas com ronco", "comilona", "gordinha" e "dupla personalidade". Sem checagem, as mensagens eram disparadas no grupo e enviadas para outros grupos, conhecidos e possíveis empregadores. Rapidamente e sem qualquer chance de defesa, as trabalhadoras se viram desempregadas e sem a possibilidade de contratação no mesmo meio. 

Poderia ser uma tirinha da dupla Leandro Assis e Triscila Oliveira nas séries publicadas nas redes sociais e também reunidas no livro Confinada (ed. Todavia). Aliás, poderia ser ficção, não fosse algo tão próximo da nossa realidade. 

Em 2022, o Mapeamento da Gordofobia no Brasil indicou que 50% das pessoas gordas sofrem com a falta de cadeiras, mobiliários e uniformes adequados no ambiente de trabalho. 





Um ano antes, em 2021, uma pesquisa desenvolvida pelo Grupo Catho com 31 mil executivos identificou que 65% dos empregadores não contratam pessoas gordas, além disso, identificou que estas pessoas, quando conseguem alguma inserção no mercado de trabalho, recebem cerca de R$ 92 a menos por mês do que pessoas magras na mesma função. 
Me percorre a espinha um arrepio de medo toda vez que penso que eu posso ter que, em algum momento, procurar trabalho novamente. O Mapeamento da Gordofobia aponta que 56% das pessoas gordas enfrenta o desafio com uniformes que causam constrangimento e falta de disponibilidade e tamanho. 

Automaticamente, volto a ter 16 anos e estou à procura do meu primeiro emprego, pensando: "Será que vai caber? Será que o GG é o maior tamanho que tem? E se ficar apertado, eu posso levar à costureira e pedir para soltar as laterais, sempre tem um pouco de pano sobrando. Ou, em último caso, posso pedir que ela faça um idêntico para mim. Isso. vai ter uma solução. É impossível que não exista uma forma de eu caber no uniforme. Se tiver que bordar o logo, eu levo numa empresa que faz este tipo de serviço e encomendo. Vai levar uns dias, mas ficará pronto. Genial. Por que não pensei nisso antes? Ufa!".  

Essa cena aconteceu comigo aos 16 anos, quando comecei a procurar meu primeiro emprego e, automaticamente, comecei a sentir medo de ser gorda demais para caber no uniforme, fosse uma camiseta, um jaleco, um avental. Dito e feito: como monitora de festa infantil num buffet, era difícil caber na única camiseta GG disponível. Só não era mais difícil que descolar um trabalho ou freela para pagar as contas, sustentar a vida universitária. 





Muito cedo, entendi que ser gorda seria um fator limitante na minha vida. Fosse nos acessos físicos, empregatícios ou afetivos. Pensei que, se fosse intelectual, teria mais chances. Aos quase 38 anos, acho que não estava errada, mas, para ser intelectual e ter uma profissão ligada a isso, eu teria que ter trabalhos regulares, subalternizados e falar muito para conseguir não depender mais disso. E, neste caminho, dá-lhe gordofobia e empecilhos. 

A mesma pesquisa mostra que 41% dos trabalhadores gordos apontam cabines de banheiro estreitas nos escritórios e ambientes de trabalho. Pois é, minha gente. Quem é que nunca teve que se espremer para fazer um xixi durante o expediente? Ou que nunca ficou segurando, tendo problemas na bexiga e nos rins por conta da gordofobia atravessando a existência?

Ainda na pesquisa, quase 30% das pessoas gordas afirmam ter dificuldades de acessar o mercado de trabalho e eu fico pensando quando não é uma lista feita por sinhazinhas claramente gordofóbicas, é a dificuldade do dia a dia mesmo: encontrar uma roupa que sirva, conseguir passar na catraca do ônibus, chegar numa entrevista e caber no mobiliário da empresa, ter a saúde mental inabalável para sustentar uma defesa de habilidades durante uma sabatina e dinâmicas de grupo. Levar um "gostamos de você, mas neste momento, buscamos outra coisa" ou "você não tem o perfil da empresa". 
 
Eu já contei por aqui de uma entrevista que fiz para ser recepcionista de um hotel na minha cidade? Comunicativa que sou, seria excelente na função, não há dúvidas. Porém, sou uma mulher gorda. E era já, aos 20 anos, que era mais ou menos a época da entrevista. Passei de etapa e, numa delas, recebi o "gostamos de você, mas vamos contratar a fulana". A fulana era loira, padrão odonto. Eu, sem nada a perder, questionei: "posso saber o por quê?". "Ah, é que ela fala inglês". À época, eu já tinha cinco anos completos de curso de inglês e, frequentando as aulas assiduamente, estava afiadíssima. Inclusive, já tinha atendido hóspedes do hotel em busca de dicionários, em inglês. 





Não disse nada. A informação estava no meu currículo. Era só uma questão de aparência. E pessoas com a aparência com a minha são sempre preteridas. Certa vez também, trabalhei em um evento. A organizadora brigou com uma das coordenadoras porque ela havia contratado uma moça preta e gorda, sob o pretexto de "ela é muito feia para o nosso evento". E até hoje me perguntam porque não voltei a trabalhar lá, no meu cargo, intelectualizado, que me dava a passabilidade que esta colega não tinha. 

E sim, eu poderia ficar para sempre aqui, citando os dados da pesquisa, que mostram que 8% das empresas preferem que a pessoa gorda contratada não tenha contato direto com o cliente - olha eu, intelectualizada aqui. 

Além disso, 6,5% não foram aprovados no exame admissional por conta do peso e 22,9% enfrentam gestores que sugeriram perda de peso. E aqui, volto com meu relato pessoal: num total de 100% das empresas que trabalhei antes de ser autônoma, todas me pediram para emagrecer e "cuidar melhor" da aparência. 
Por isso, a denúncia do grupo de WhatsApp mexe tanto comigo. Por isso eu morro de medo de ter que "voltar ao mercado de trabalho" e buscar empregos. Por isso eu sei como é exaustivo ser uma pessoa gorda e ter seu valor questionado o tempo todo, receber menos, ter sua vaga entregue para outras pessoas que não tem a mesma competência, mas possuem corpos que atendem ao padrão. 





O impacto da lista com as babás, as descrições de "gordas" e as palavras em negrito dizendo NÃO CONTRATEM tem um impacto brutal. Mas não é só isso. A gordofobia tem esse impacto. O problema é que ninguém chama pelo nome que tem. E, raramente alguém diz: "não contrato pessoas gordas". Mas, ainda em 2023, pedem para que o currículo seja enviado com foto. Sério? 

De acordo com o Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), é proibida a difamação, assim como o conteúdo vexatório das mensagens. O mesmo vale para o anúncio da vagas discriminatórias. No entanto, não há o que regule a gordofobia, logo, num país em que humoristas lutam pelo "direito de ofender", estamos mal respaldados com isso. 

E mal na vida também. Se as pessoas se sentem confortáveis o suficientes para fazerem um grupo de WhatsApp dizendo para não contratar pessoas gordas, imagina o que não fazem escondido, no que diz respeito ao esculacho aos nossos corpos?

E você, que tá me lendo: contrataria uma pessoa gorda?