Jornal Estado de Minas

ARTIGO

'Bonita de Rosto' e a protagonista do improvável

Bonita de rosto é aquela história que você provavelmente não quer ver nos cinemas. E se quer, dificilmente verá. 


A diretora e roteirista do filme, Ana Squilanti, que se inspirou no próprio conto “Bonita de Rosto”, contido no livro “Costuras para fora” (editora Nós, 2020), acertou demais com o curta metragem que bota na tela uma adolescente gorda e fora do padrão como protagonista da própria vida e história. A personagem Celina (interpretada pela brilhante Bia Capelossi) é a nossa protagonista do improvável. Veja trailer aqui






Já premiado, em 2021, pelo Prêmio Estímulo ao Curta-Metragem, uma importante iniciativa de fomento ao cinema no Estado de São Paulo o curta nos brinda com um cenário todo saudoso, de azulejos portugueses na cozinha, piso de caquinho no quintal e cara e cheiro do final dos anos 1990, começo dos anos 2000, com a ausência de telefones celulares e telas múltiplas, o famoso ‘caderninho de perguntas’ e os clipes na TV, à tarde, o filme é uma delícia e nos brinda com a Celina é uma garota de 12 anos que, como toda garota de 12 anos, tem vários sonhos, crush em alguém da escola e fome de vida.


Os anos 2000 estão em voga atualmente, não apenas na moda, mas também nas produções audiovisuais. O filme "Bonita de Rosto" faz, então, referência a essa época, mas vai além, oferecendo espaço para personagens e narrativas que antes não eram representadas. A garota mais popular da escola, dona do famoso caderno de perguntas, é uma menina negra. Além disso, o interesse romântico de Celina é interpretado por um ator transgênero. O filme rompe com estereótipos e mostra que a beleza e a felicidade não estão restritas a um único padrão.
 


Até que, na trama, a inevitável frase chega: “claro que ela é bonita! olha o rosto dela, que lindo". E aí, Celina passa a carregar o fardo que é ser uma menina bonita de rosto. Ser bonita de rosto é ser pela metade. É não ser inteira: desejada inteira, bonita inteira, uma pessoa inteira. É ser só uma parte. E, normalmente, a parte que não interessa. Há quem seja bonita de bunda, bonita de corpo e aí, a vida parece ser mais fácil. 






Para Celina e para mim, ser bonita de rosto não é, nunca foi e nunca será um elogio. Me faltam dedos nas mãos para contar quantas vezes me disseram isso: você tem um rosto lindo, por que não se esforça para emagrecer. Claro, porque tudo é um esforço individual da pessoa gorda.


Como a Celina, eu sei que não basta. Aos 12 anos, ela descobre que correr pelo quintal após as aulas, girar o bambolê no corpo, ficar sem comer, comprar revistas que prometem perder x kgs em y dias com chás milagrosos causam diarreia e mal estar. Junto com os possíveis quilos eliminados, a autoestima - que já não é muita diante do bullying - vai pelo ralo. 


Até responder um caderninho de perguntas coletivo da escola e ser chamada de ‘bonita de rosto’ pela melhor amiga, a Daniela (Mariana Bonet), Celina nunca achou que houvesse algo errado com ela. Até que o garoto que ela confessou, nesse mesmo caderninho, ter beijado, disse que ela não deveria ter exposto e que, claro, era tudo no sigilo - qualquer semelhança com a vida de qualquer pessoa gorda ou fora do padrão não é coincidência - até que ela não cabe no vestido de festa junina, até que a sala toda se levanta num “ola” quando ela senta. Até que fica insuportável viver num ambiente onde te dizem o tempo todo que ser você é errado. 






Na tela, aumentada, Celina é uma adolescente e quer viver. Se esforça, durante algum tempo, para caber: na roupa da festa junina, na expectativa da paixão adolescente, no que as amigas esperam que ela seja. Celina repete o que toda pessoa gorda já passou. Mas, são nas cenas inocentes e na intensidade precisa que fica dito o óbvio, sem precisar de didatismo: Celina é improvável. 


Sem superficialidade, o drama joga luz na gordofobia sofrida na escola e aborda questões relacionadas a distúrbios alimentares, padrões de beleza e auto aceitação, proporcionando uma reflexão sobre as pressões sociais que as crianças enfrentam em seu processo de amadurecimento.
A escola aparece como um ambiente de desigualdades, além de ser um local de aprendizado, é também um espaço onde surgem as pressões sociais. Durante a adolescência, as crianças tendem a desejar serem aceitas e não querem se destacar negativamente. A gordofobia é retratada como um mecanismo normatizador que dita como as pessoas devem se relacionar e agir em relação aos outros. Nesse contexto, Celina se vê confrontada com a ideia de que sua aparência a impede de ser considerada bonita e popular.






Após se odiar, não porque não gosta de si, mas porque o mundo é cruel com pessoas gordas, Celina se olha no espelho e se enxerga. E aí, transborda. Entende que não precisa caber, mas se esparramar. 


A "Bonita de Rosto" tem um final feliz, longe dos estereótipos de transformação física e emagrecimento. A narrativa empodera não apenas a protagonista, mas o público que assiste, ao mostrar que a verdadeira beleza está em si mesmo. O filme reforça a importância de ocupar nosso lugar no mundo sem se deixar definir pelos padrões impostos pela sociedade. Fica também a reflexão: dizer que alguém é bonita de rosto é tão anos 1990. Démodé. 


Como pessoa gorda que sou, fiquei absolutamente mexida ao assistir o curta e me enxergar nele. Revivi muito da gordofobia infantil e da quantidade de tempo que perdi tentando me adequar, sobretudo, ao olhar do outro. Queria ter sido mais rápida nesse jogo, como a Celina. Mas, fico feliz que tenhamos produtos como o “Bonita de Rosto”, assim, uma grande luminoso escrito A CULPA NÃO É SUA pode brilhar para todas que são bonitas de rosto, de corpo e que não obedecem aos padrões. 


Ao filme, a diretora e a toda equipe, desejo todo sucesso do mundo nos festivais. A nós, desejo que o filme chegue logo às plataformas.