Jornal Estado de Minas

SAÚDE

Eu quero a imortalidade das pessoas magras


Eu quero ter a imortalidade das pessoas magras. É isso mesmo. Não sei se você, caro leitor, já reparou, mas pessoas magras são imortais. É, uai. Elas não morrem. Nem adoecem. Quem aqui já viu uma pessoa magra e doente? Se disser que sim, eu duvido. Pessoas magras não têm diabetes, não têm colesterol alto, não sofrem revés como um atropelamento, uma queda, um torcicolo, uma gastrite nervosa. Pessoas magras são felizes e saudáveis. Ora, há algo que diga o contrário? 

E, sendo assim, se tornam também o patamar mais alto da cadeia de valor social humano: o da quase imortalidade, ou dela mesma, no imaginário popular. Afinal, ser magro é sinônimo de saúde impecável e o passaporte para que a pessoa use drogas, beba de forma exagerada, fume em reality shows e ganhe a alcunha de saúde em dia, não pelos hábitos e estilo de vida, mas pela barriga trincada e corpo sarado, exatamente como o padrão manda. 





Meu sonho é ser saudável como o Felipe Neto. Sim, ele mesmo, o youtuber. Ele mesmo, que eu achei genial quando comprou todo acervo de revistas em quadrinhos LGBTQIA+ na Bienal do Livro do Rio de Janeiro em 2019 e distribuiu gratuitamente. Ele mesmo, que enfrentou as eleições presidenciais de 2022 de peito aberto e pronto para a luta contra as fake news. Ele mesmo que, nesta última semana, perguntou ao Chat GPT - aplicativo de inteligência artificial - se “obesidade é doença”. 
 
 

Veja só. Felipe Neto é um cara bacana. Pediu até perdão para a Dilma Rousseff pela postura com ela diante do processo de impeachment, disse até que queria seguir produtores de conteúdo gordos para ser antigordofobia. 

Pena é que na hora de usar a inteligência artificial a seu favor - ainda que a resposta do chat tenha caminhado para a necessidade de humanização dos corpos gordos - fez uma pergunta capciosa e que proporcionou um verdadeiro chorume nos comentários, depreciando, mais uma vez, os corpos que não se adequam. 





Não precisa ser muito inteligente para entender que, se quisesse ser aliado antigordofobia, a pergunta feita poderia ser “Explique porque a obesidade não deve ser considerada doença” ou “Como ajudar na luta antigordofobia” ou ainda “Como melhorar o atendimento e acesso das pessoas gordas à saúde”. 

Perguntar algo cuja resposta já se sabe é tripudiar em cima da dor das pessoas gordas. É expor ao ridículo. É rechaçar. É perversão, mas disfarçada de bom mocismo, ou de “eu só estou postando o que a inteligência artificial disse". A gente sabe que não é “só” isso. 

A gente sabe que, no lugar de Felipe Neto, um baita influenciador dos nossos tempos, qualquer informação dada é preciosa. Ele, inclusive, sabe disso. Nos esbarramos em reuniões durante a campanha presidencial na luta contra as fake news e pelas informações. Ao lado de Janja, fez um papel importante. Do lado de cá da luta, para as pessoas gordas, não agrega em absolutamente nada. 





Porque a verdade é uma só. Obesidade é considerada doença de acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), no entanto, não é respeitada como tal. É lida como desvio de caráter, como fraqueza, como insubmissão, como monstruosidade e como um acesso livre a um corpo que se torna público, desumanizado e não consegue, sequer, chegar ao atendimento à saúde que deveria buscar. 

Pessoas gordas morrem diariamente sem atendimento médico e/ou por negligência. Se é uma doença, por que não é tratada? Porque os recursos governamentais para o ‘combate à obesidade’ não são destinados à compra de macas, equipamentos hospitalares, medidores de pressão arterial etc?

Apontar o dedo na cara da pessoa gorda e berrar “VOCÊ É DOENTE” não faz com que ela emagreça. Nem com que fique saudável. Pelo contrário, só reforça um estigma que é fortíssimo. 

Uma pessoa doente quer e precisa de acolhimento. Seja honesto consigo mesmo: você trataria alguém doente da mesma forma que trata uma pessoa gorda? Quando alguém anuncia que tem uma doença, você pensa: “bem feito, não se cuidou”?! Ou acolhe?

Pois é. E por que você faz isso com pessoas gordas?

E não, já falamos aqui, mas vamos repetir: pessoas gordas não são gordas exclusivamente porque comem de forma compulsiva ou não se exercitam. Elas são gordas por fatores genéticos e por condições multifatoriais, que garantem quilos a mais do que o Índice de Massa Corporal (IMC) aceita. Mas, convenhamos, o IMC já é aquela medida ultrapassada há tanto tempo que médicos mesmo já reavaliam o uso e entendem que pessoas gordas com estilos de vida saudáveis e sustentáveis podem sim, ser saudáveis. 





Fato é que a crença social diz que pessoas magras podem ser o que quiserem – e seguirão sendo saudáveis – e pessoas gordas são relapsas e não merecem qualquer respeito, já que não têm dedicação em emagrecer. 

O que precisamos entender, de uma vez por todas, é que a classificação da OMS que coloca a obesidade como doença não protege as pessoas gordas, não oferece tratamento, não traz dignidade alguma. Pelo contrário, agrava o preconceito e serve de máscara para camuflá-lo. 

O que nos deparamos, com frequência, é com respostas como a do Chat GPT e sabe-se lá qual foi a intenção do Felipe Neto ao fazer essa pergunta à inteligência artificial – que a obesidade é uma questão individual. E não é. 





Alguns comentários são bastante perversos. Como este: “Com todo o meu lugar de fala, me sinto totalmente apta para falar: PERFEITO! Melhor impossível. Coloquem num outdoor o texto do ChatGPT! Obesidade é doença, apontar esse fato não é fobia e sim medicina.. Romantizar a sua dor não faz vc ficar saudável!” 

E lá vamos nós, discutir a tal da romantização de novo e de novo e de novo e de novo. Totalmente exausta disso. Não existe romantização do corpo gordo. O que precisamos é parar de romantizar a magreza como a única opção de existência possível

Uma pessoa gorda existindo não está romantizando nada. O fato de ela não querer emagrecer e/ou não estar se esforçando 100% do tempo para isso não significa que ela esteja romantizando algo, mas que ela está vivendo a vida dela. 

A gente não pode discutir corpos gordos sem discutir soberania alimentar. Sem discutir capitalismo. Sem discutir acesso à saúde. A última ponta dessa cadeia é a pessoa gorda e a responsabilidade que ela tem sobre o próprio corpo no sentido de torná-lo outra coisa. E, para isso, ela precisa de um empenho coletivo e não só de ‘força de vontade’, como os coachs e influencers querem nos fazer acreditar. Temos, inclusive, uma pesquisa sobre isso





A única coisa boa da pergunta do Felipe Neto é que suscitou, mais uma vez, uma discussão sobre isso. E, apesar de toda violência, jogar a pauta para cima é bom. Faz com que mais pessoas da sociedade civil discutam a gordofobia e isso seja incorporado ao cotidiano. Afinal, é falando sobre que vamos avançar. 

Não basta uma pessoa querer ser magra e, pronto! Ela vai ser. Não basta se matricular na academia. Não basta viver de salada – ou simplesmente parar de comer, como sugerem os mais ignorantes. É preciso um tratamento multidisciplinar em saúde. E, para isso, a pessoa precisa acessar a saúde. Sobretudo a saúde mental. Que ninguém fala. Nem mesmo no setembro amarelo. E já falei disso por aqui também

Por essas e outras é que desejo alcançar a imortalidade das pessoas magras. Não sei se vocês sabem, mas, apesar de saudáveis, elas são as únicas que têm o direito de ficar doentes. Não que elas fiquem, é claro.  Nos hospitais, só há macas, medidores de pressão e balanças para pessoas magras. Ouse uma pessoa gorda ficar doente e morrerá sem atendimento e ainda será culpada por isso: por que não emagreceu antes?

Pessoas magras têm o direito de serem escrotas com pessoas gordas. Mesmo que digam que pessoas gordas são doentes – a fim de esconder o próprio preconceito e gordofobia – e agem com total perversidade. 





Claro que não agiriam assim com alguém que está, de fato, doente, com algum problema como gastrite, algum vírus pego no ar etc. Mas pessoas gordas não, elas “merecem” ser maltratadas a partir da inferioridade diante das pessoas magras. 

Ser magro é um card de curinga social. Com ele, você é amado, desejado e pode, inclusive, ser escroto com pessoas gordas, ainda que diga que elas são doentes. É, isso mesmo. Pessoas magras se sentem superiores às pessoas gordas – e toda sociedade concorda que são – e que pessoas gordas seriam, com base em pesquisas que já dissemos aqui, não mostrarem uma verdade única, doentes. 

Ser magro é o resultado final de uma dedicação – não sabemos precisar exatamente qual – mas é um prêmio. Qualquer questão da pessoa gorda vai ser relativizada como um merecimento. E ela não merece dividir o mundo com a superioridade e imortalidade da pessoa magra. 

E você, meu caro Felipe Neto, ainda há tempo. Dá para melhorar. Dá para mudar. E, neste caso, realmente, é só querer.