Jornal Estado de Minas

DIA DA MULHER

O que faz de uma gorda, mulher?


Ronda, por séculos, a pergunta: o que é ser uma mulher? E, dentre elas, só agora, em 2023, parei pra pensar: o que é ser uma mulher gorda?

Sem sombra de dúvidas, é ser gorda. Já mulher, temo que nem mesmo Simone de Beauvoir consiga convencer a contemporaneidade que dá para se tornar, sem emagrecer. Sem se mutilar para caber no olhar - e no desejo construído - do outro. 





Em tempos de não-monogamia e de culto às não-monoculturas, ser mulher gorda é seguir à margem da definição do que é ser mulher. 

É experimentar não o assédio marcado pelo desejo, mas a violência marcada pelo ódio. É ter, literalmente, o sujeito barrado da própria experiência do existir. 

Quando adentramos no escopo da violência de gênero, é urgente que falemos também sobre as intersecções que permeiam os tempos que vivemos. Não dá para seguirmos pensando na mulher como um ser universal: branca, magra, de classe média, que odeia receber flores na data de hoje, luta pelo direito ao trabalho e quer ser respeitada com a ausência de “fiu-fiu” no transporte público. 

Sem escapar da violência de gênero, que a cada seis horas faz uma vítima no Brasil: segundo os dados do último relatório divulgado pela Rede de Observatório da Mulher, as mulheres gordas também são mortas por feminicídio. Mas também por invisibilidade, gordofobia, depressão. Vale dizer que bem mais do que por qualquer comorbidade e/ou artéria entupida que tentam atribuir aos corpos gordos para justificar ainda mais uma violência. 





Mulheres gordas não são lidas como mulheres. Não são enxergadas como seres humanos e, enquanto há mulheres queimando sutiãs pelo direito ao trabalho, nós estamos sofrendo porque os hospitais não têm macas que nos caibam. 

Enquanto mulheres brancas e magras querem o direito ao trabalho e salário iguais, mulheres gordas só querem uma oportunidade. Conseguir passar na catraca do transporte público para chegar à entrevista de emprego. Aliás, mulheres gordas querem ser vistas como seres humanos capazes e ter uma disputa minimamente justa no mercado de trabalho, já que sete em cada 10 empresários brasileiros não querem contratar pessoas gordas. 

Enquanto mulheres brancas não querem que o garçom atenda primeiro seu companheiro no restaurante ou entregue a conta nas mãos dele, as mulheres gordas imaginam se, em algum momento, terão um companheiro ou companheira para dividir minimamente a vida, trocar algum afeto positivo e acessar o mínimo para a saúde mental e psíquica. 





Entre os sonhos da mulher gorda estão: não ser morta por agressões na rua e também conseguir comprar um absorvente adequado ou uma calcinha que caiba e não seja desconfortável. 

Enquanto mulheres magras, brancas e classe média reclamam do excesso de flores recebidas no dia de hoje, as mulheres gordas, trans, pretas e com deficiência adorariam receber flores, ao menos hoje. Ou em qualquer dia da vida que não o da sua morte. 

Ao mesmo tempo em que mulheres magras, brancas e classe média reclamam dos seus chefes abusivos, dos seus salários abaixo dos salários dos homens da empresa, todo um grupo: gordas, trans, pretas e com deficiência desejam ter um emprego. 

E sem nivelar por baixo: todos os desejos são importantes e urgentes. Mas a intersecção é ainda mais. Senão, a luta não é coletiva e segue dando manutenção a uma lógica colonial, minimamente. 





Neste 8 de março, aposto uma mão que mulheres gordas adorariam receber flores – talvez as primeiras da vida –, um convite para jantar e, especialmente, de ter assegurado o direito de colocação de um DIU, já que, muitas vezes, ela é negada por médicos incompetentes que alegam isso ser impossível. 

Em 2023, no 8M, queremos respeito, ninguém que nos diga que devemos sentar com as pernas fechadas, sermos menores, mais brancas, menos espaçosas, menos nojentas. 

Queremos, finalmente, conseguir dar uma volta numa montanha russa ou nos divertir num parque. Aquela tarefa básica, mas que ninguém imagina que a mulher gorda enfrente, afinal, ela nem é uma mulher. Ou é? 

Sojourner Truth, abolicionista, há 170 anos, nos perguntou: “e eu não sou uma mulher?” e eu mesma já falei sobre a bestialização da mulher gorda e de uma feliz data apenas para alguns tipos de corpos, mas sigo pensando no quanto ainda precisamos avançar no debate para que, no 8 de março, ninguém nos ofereça gratuitamente uma dieta, mas que se lembrem, minimamente, de um abraço. Pode até ser a flor e os chocolates. Só não dá pra seguir sendo o desprezo social que nos coloca como “cidadãs de segunda classe”, na melhor das hipóteses. Naturalmente, vão nos tratar como aberrações, nos matar pouco a pouco, dia a dia, e dizer que a culpa era da quantidade de quilos na balança ou de gordura nos nossos corpos. 

Vão nos culpar por não sermos quem gostariam que fôssemos. Vão sumir com nossos corpos e vão dizer: nem era uma mulher, era uma gorda. 

Precisamos que as mulheres que estão à margem sejam mulheres! Ou se transformem, ao menos. 

Por isso, desejo que, nesta data de direito para as mulheres, as mulheres gordas, enfim, conquistem o de serem mulheres!