Jornal Estado de Minas

MAIS DA METADE DA POPULAÇÃO

Por que o BBB 22 só tem um participante gordo?


 
O tão esperado BBB 22 estreou há dois dias e, de forma bastante tímida, a pauta da ausência de pessoas gordas no reality show que neste ano conta com anúncios de até R$ 92 milhões volta a ser discutida em algumas rodinhas, especialmente no Twitter, onde as opiniões se dividem entre quem acha que isso não é pauta, quem se sinta aliviado por não termos pessoas gordas expostas em rede nacional, quem puxe a discussão sempre que dá e quem segue praticando a gordofobia como a máxima de um estilo de vida. 





Em 20 edições, se somarmos pessoas gordas e com corpos fora do padrão estético vigente - magro e/ou sarado - contamos nos dedos de uma mão o total de participantes. Em 2020, temos o brilhante Babu Santana, que sofreu gordofobia e racismo até falar chega dentro da casa e ficou em quarto lugar no reality. 

Neste ano, entre os 20 participantes anunciados, apenas o ator, cantor e empresário Tiago Abravanel, de 34 anos, é gordo. Convidado por Boninho para o camarote, o neto do apresentador e empresário Sílvio Santos, desde que entrou, diverte os brothers, sisters e espectadores com muito carisma, mas também divide momentos em que só existe: à beira da piscina, de sunga, sem camisa, sendo ele mesmo e se preocupando com zero coisas - combinemos que, fosse eu herdeira e com a vida ganha, faria o mesmo, óbvio - ora divide tensões, como a que compartilhou com Jessilane sobre o tamanho das toalhas. 

"A toalha não dá a volta na minha circunferência. Eu tive que pegar a toalha da piscina. Não sei nem se pode ", disse.
 
Em seguida, ele lamentou que a situação acabou sendo um tanto quanto constrangedora: "Cê concorda que é um pouco constrangedor pra mim, fazer isso? É mais fácil dar uma toalha maior".




 
 
Sim, Tiago. Era mais fácil. E talvez seja por este - dentre os muitos motivos - que a direção do reality não convida pessoas gordas para o mesmo.
 
Com toda honestidade do mundo: toda pessoa gorda tem dificuldade de comprar toalhas grandes. Seja pelo acesso, seja pelo preço, seja pelo frete que às vezes é mais caro que o produto a depender da região. 
 
Mas, voltando ao programa, talvez seja mais fácil ignorar que existimos e somos mais de 60% da população brasileira do que ter na equipe de produção pessoas também gordas - alguém já viu um Dummy gordo? (contém ironia) - e que apontem questões como: tamanho das toalhas, tamanho das estruturas das provas de residência, suporte de peso, etc. 
 
Se o reality, que cresce a cada ano - e o ex-apresentador (Tiago Leifert) inclusive insinua que paga o salário de atores pretos da emissora - se pretende ser um recorte da sociedade, inclusive com o número equiparado de pessoas pretas e brancas dentro da casa, onde está a diversidade corporal?
 
Como eu escrevo sobre corpos gordos, me atenho a eles. E, embora este ano tenhamos a participação de Linn da Quebrada como um corpo dissidente de travesti como convidada para o programa, há também uma grande lacuna nesta pluralidade, haja vista que em 22 anos, apenas uma mulher trans - Ariadna - esteve no reality.  Além disso, pessoas com deficiência (PCDs) seguem invisibilizadas. 




 
E não, não é mimimi. Corpos dissidentes existem na sociedade. E o fato de não estarem/ocuparem lugar num reality show reforça não só a opressão estrutural pela qual tais corpos são submetidos, como também escancara a invisibilização dos mesmos. 

Se não vemos, eles existem?

Entre crossfiteiros, corpos padrões e sarados e muito procedimento estético envolvido, por que não colocar pessoas gordas para tensionar o debate da melhor forma que o diretor do programa gosta, ao colocar bolsonaristas e petistas num mesmo programa? Ao escolher a dedo pessoas racistas, gordofóbicas, contrárias aos projetos sociais e pautas progressistas e até mesmo negacionistas?
 
Tenho estado exausta - não é novidade pra quem me acompanha aqui - de discutir e chover no molhado sobre o tema da gordofobia, porque estamos em 2022, somos sobreviventes de uma pandemia e de um governo genocida que empurrou mais de 600 mil para a morte, logo, me sobe uma preguiça intrínseca espinha acima de ter que pensar em defender o óbvio e seguir dizendo porque é importante que o maior reality show da TV aberta no Brasil tenha representatividade corporal e os motivos pelos quais isso é essencial para que a pauta antigordofobia fure bolhas. 
 
 
 
Imagine você que o programa fica no ar três meses. Em 2021, foram 100 dias de confinamento com um país também confinado pela segunda onda da COVID-19 no mundo. Imagina que sua avó, sua manicure, seu taxista, o cobrador do ônibus que você pega diariamente, sua vizinha, o dono do bar da esquina, enfim, basicamente todo mundo além da sua bolha tuiteira ou do instagram ou dos amigos da faculdade ou dos amigos de algum outro círculo qualquer, tem a chance de ver uma pessoa gorda vivendo sua vida, se exercitando, comendo, sendo divertida, sofrendo de saudade da família, surtando dentro da casa, sendo jogadora, fazendo intrigas, enfim, vivendo como uma pessoa vive sua vida?
 
Imagine também que isso pode pautar discussões dentro e fora da casa, mas, sobretudo, pode naturalizar a existência dos nossos corpos misturados a outros - padrões e não tão padrões assim. Imagine que, em algum momento do futuro (e eu juro, juro por Deus que espero que seja muitíssimo breve)  a existência destes corpos no show seja não apenas uma cota, de um único corpo, mas paritária entre outros, assim como passou a ser a questão racial (que já não era sem tempo, convenhamos). 




 
 
Há quem argumente que não aguentaria, por três meses, ver pessoas gordas sofrendo em rede nacional. A única diferença, penso eu, é que estaria em rede nacional. As pessoas gordas sofrem na maior parte do tempo, em qualquer lugar. Escalonar situações do dia a dia - como a toalha que não fecha no corpo, por exemplo - joga luz numa discussão que é pra lá de urgente e tem a ver muito mais com acessibilidade e direito à cidadania e existência (e eu bato nessa tecla há exatos 31 textos nesta coluna) do que com as questões de saúde. 
 
O sofrimento, infelizmente, é inerente aos corpos dissidentes. As violências ocorrem seja num reality show, seja na casa do lado da nossa, seja com qualquer pessoa gorda que ousar ser gorda e não se desculpar por isso.
 
E eu, que não gosto da fetichização da violência e da espetacularização das dores, de repente, acho que poderia ser educativo constranger a população brasileira através de vários corpos gordos num reality show onde promover entretenimento e ganhar R$ 1,5 milhão é o foco principal e não perder peso, como muitos que já existiram no Brasil e seguem existindo no mundo.




 
 
Por mais hate que possam receber nas redes sociais - e isso já acontece, verdade seja dita, fora dos realitys - pessoas gordas precisam, claro, ocupar estes espaços e levar discussões sobre acesso a absorventes, acesso ao mercado de trabalho, acesso às academias, a ambientes médicos, etc, pra dentro da TV brasileira sem o estereótipo das personagens de novelas e sem as edições todas de matérias. 
 
É preciso, em algum momento, que o ódio a estes corpos irrompa dos porões onde fingem estar preocupados com a saúde dos mesmos e ganhe o mundo, para então, ser devolvido e ter um destino compartilhado.
 
É preciso que se perca o medo de falar sobre corpos gordos. De conviver com eles. De olhar pra eles. É preciso que a gordofobia de cada um - e a sua tá aí, acredite - seja posta à prova. Só assim, ela será destruída. 




 
Se compartilhar informações sobre pessoas plurais existindo é um foco do programa, onde estão as pessoas que representam mais de 60% da população brasileira? Por que elas não ocupam seus lugares na ‘casa mais vigiada do Brasil’? 
 
E, honestamente, toalhas à parte: qual a grande dificuldade de uma das maiores emissoras da América Latina em fazer uma estrutura que comporte tais pessoas? E não, não estamos falando de provas de resistência, haja vista que, por aqui, acreditamos que pessoas gordas são perfeitamente capazes de disputá-las de igual para igual, havendo estrutura ideal para tal. 
 
Um programa que chega a casas onde não chega wi-fi, por exemplo, é urgente que trate de temas e experiências como a dos corpos gordos para além do que preza ser diversidade. Ou então, que assuma a própria gordofobia e pare de quotizar corpos como os nossos e supervalorizar os corpos dentro de um padrão inalcançável.
 
Anualmente, o tema volta a algumas discussões dentro de bolhas. As emissoras se limitam a dizer que não vão comentar o assunto. As pessoas magras fingem não saber do que se trata e seguem sendo gordofóbicas. Mas seguem com força.




 

Em seus portais, lançam matérias como ‘engordou no reality, veja x ex-participantes que engordaram após sair do programa’, transformando a forma corporal dos indivíduos em uma notícia cuja pauta é esvaziada e tosca. Ao mesmo tempo, as pessoas gordas seguem sendo invisibilizadas e tendo seu direito à existência tolhido. No entanto, a representatividade precisa ser mais do que conveniente e no âmbito do discurso.
 
Ela precisa ser prática. 
É o que eu desejo, além de mais corpos gordos à beira da piscina da casa mais vigiada do Brasil, só existindo. E, enquanto isso não é possível a todes, sigo fazendo meus textões. Pra que, amanhã, menos pessoas gordas estejam sofrendo opressão, mas sim, gozando a vida, existindo e celebrando as próprias existências em seus corpos que são tecnologias de prazer e guerra pro futuro - que acontece agora. 

audima