Jornal Estado de Minas

DESOBEDIENTES À NORMATIVIDADE

Corpos que não se desculpam e enlouquecem pessoas


 
“Um corpo gordo que não se desculpa enlouquece as pessoas”. Essa frase é da artista Kelli Jean Drinkwater, dita num Ted x Talks há alguns meses e que conheci através da escritora Lorena Otero, autora do livro “Osso de Baleia” e essa frase me foi um presente. Foi através dela que entendi muito do comportamento bizarro, odioso e destrutivo das pessoas opressoras perto de corpos que estavam ali, desobedecendo a normatividade. 





Aliás, muito se fala em exercícios para definir a barriga e deixá-la chapada, para melhorar o cardio, para ter mais resistência e evitar a COVID-19, para acalmar a mente, para conquistar o homem ou a mulher (sempre dentro da norma) dos seus sonhos, mas, pouco se fala em exercícios para desobedecer o que esperam da gente. Em exercícios para sabermos o que, de fato, nós queremos e não o que nos é exigido e arrancado ao mesmo tempo. 

Quais seriam os exercícios para matar de inanição a superioridade da normatividade? Tenho pensado, novamente com a ajuda de Lorena, essa amiga querida, em como desobedecer, essa atividade tão simples, que fazemos com tanta eficácia quando crianças e que, já adultes e cheies de moralidades, tememos ousar pisar fora da faixa e sermos julgades, não sermos compreendides e mais um tanto de balelas e desculpas que usamos para não nos havermos com nossos desejos e com a quantidade de subversão, inclusive dos nossos próprios ideias, eles exigem. 

E aqui, não falo apenas de corpos gordos, mas de corpos dissidentes, de modo geral. De corpos que, somente em desobediência, tal qual aprendi com o poeta Gonzaga Neto, ainda se mantém de pé. Inclusive, é ele que no livro “É na desobediência que meu corpo se mantém de pé” sintetiza a obrigatoriedade do ir contra as regras impostas para sobreviver. 





Exemplos não faltam. O escritor Victor Hugo Felix, no livro “A triste história do fim do mundo” nos traz 13 personagens - uma mãe e seus 12 filhos - como os últimos sobreviventes de uma distopia, que, diga-se de passagem, é bem parecida com os tempos que atravessamos e para se manterem de pé, ou vivemos, desobedecem, inclusive, a ordem natural das coisas. 

O conceito de desobediência, no dicionário similar a insubordinação, aqui, é também o conceito de seguir existindo. E essa existência, sem subalternidade, é a que segue enlouquecendo as pessoas. 

A lucidez de sabermos o que está nos acontecendo - e nos ataca por todos os lados, de todas as formas - e, mesmo assim, conseguirmos escapar e criar lugares, físicos e imaginários, em que podemos existir e não só, mas celebrar essas existências, causa um desconforto facilmente confundido com loucura em quem tenta, o tempo todo, nos negar. 





O que querem da gente é obediência e subserviência. Querem que nossos corpos gordes, LGBTQIA%2b, nordestines sejam subalternos e servis. Fetichizados e calados. Á beira da morte, do caos, do luto, do desemprego, do autoritarismo e agredecides. Nos querem dóceis e domesticades. Nos querem servis às leis, normas e formas injustas. Nos querem embranquecides, calades e prontes para servir. E servindo. Servindo. Servindo. 

O que esperam, dos nossos corpos, é que estejamos em pé para trabalhar. Para alimentar o capital. Que vendamos nosso tempo - e no pacote, nossos sonhos, desejos e brilho nos olhos. Querem comprar isso tudo por um salário mínimo, que não paga aluguel e cesta básica. Querem que mendiguemos por tudo: do afeto à comida. 

É preciso ser desobediente para atravessar uma pandemia sob um governo autoritário que nos encaminhou, de forma organizada e arquitetada, para a morte - e conseguiu levar 600 mil dos nossos. Inclusive, é preciso ser muito desobediente para conseguir seguir existindo, produzindo, trabalhando e criando, diante do luto.





É preciso desobedecer para seguir indo ao supermercado, abastecendo veículos, fazendo pedidos por aplicativos, vivendo em bolhas. É preciso ser desobediente quando levam um pouquinho do nosso corpo a cada comentário. A cada olhar de nojo. É preciso ser muito subversive para escrever e criar, como artista independente, no Brasil de 2021. É preciso desobedecer pra existir. 

A arte, mais uma vez, dando conta do indizível ou do que tentamos fugir. Eu sigo incendiando mundos e lembrando, como num texto antigo, que vocês odeiam pessoas como eu, gordas. Como diz Gonzaga Neto, sintetize um corpo cansado. E, o que fazemos, quando não aguentamos mais, senão, desobedecer? 

E, como nos lembra Lorena Otero, o humor e o apontamento de quem nos oprime é uma excelente estratégia de existência num mundo cheio de regras e normais. Ainda, como nos refresca Victor Hugo Félix, desobedecer, inclusive, ao fim do mundo e seguir habitando-o é um excelente jeito de criar amanhãs. 

Reflito muito sobre isso: como criamos o hoje e projetamos o nosso futuro? 

Seguimos insubordinades. Subvertamos os dispositivos de controle sobre os nossos corpos. Sejamos então corpos violentos e existindo num mundo que tenta nos anular de qualquer forma, a todo custo, com suas dietas insanas, seus preconceitos malditos, suas formas de nos aniquilar. 





Seria medo? Seria estranheza? Seria loucura? Seria perversão? Ou seria só mais um jeito de manter o status quo dos mundinhos intactos, como sempre foram, dentro da normatividade, afinal, obedecer é mais fácil do que pensar. Obedecer é mais cômodo do que criar alternativas ao fim do mundo.
 
Do que dizer, com humor, das dores e opressões que nos atravessam. Obedecer não dá margem pra arte, pra literatura, pra que a gente possa pensar e trazer outras pessoas conosco. Obedecer faz tudo parecer normal e dentro do que é lido como natural, mas é entediante, insipiente e mórbido. 

Que possamos, então, desobedecer. Que possamos, com nossos corpos insubordinados, enlouquecer a normatividade, perturbar a ordem das coisas, incendiar universos inteiros de hipocrisia. Que possamos, diante do abismo - e da triste história do fim do mundo, desafiar a morte com a nossa própria vida.




 
Que possamos existir e nos mantermos em pé - com o direito, claro, de fraquejar e cair, vez ou outra, afinal, desobedecer cansa, mas, que possamos seguir e subverter, sempre, a ordem das coisas, seja com livros, com nossas palavras, com novas narrativas e com ferramentas de existência tão tecnológicas como a alegria. 

Que não possam, nunca mais, disfarçar ou reduzir as nossas existências. Que elas se tornem cada vez mais desobedientes, cada vez mais incandescentes, cada vez mais incômodas - e sendo assim, cada vez mais felizes e celebrativas. 

Confira um pouco mais dos livros citados na matéria

Osso de Baleia, de Lorena Otero (Quintal Edições)
 
(foto: Reprodução)
 
 
Até onde você iria para se manter firme na dieta? O que você faria com o seu corpo para impressionar alguém? Você se sente livre na sua pele? O novo livro da Quintal Edições não responde nenhuma dessas perguntas, mas levanta essas e outras diversas discussões sobre transtornos alimentares, acessibilidade e os desafios vividos pela pessoa gorda em uma sociedade que considera a aparência física um valor moral.





Osso de Baleia é o livro de estreia de Lorena Otero, jornalista e redatora publicitária que viveu os dilemas retratados na coletânea que reúne 18 contos. “Minha intenção com essa obra é mostrar todo o dano que pode ser causado quando a pessoa gorda é desumanizada, tratada apenas como corpo. Somos todos seres integrais, que choram, sofrem e querem ser amados”, define a autora.
 
é na desobediência que meu corpo ainda se mantém de pé, de gonzaga neto (anzóis produtora) 
 
(foto: Reprodução)
 
 
A síntese de um corpo cansado. Essa é a premissa do livro “É na Desobediência que o Meu Corpo Ainda se Mantém de Pé”, do artista Gonzaga Neto, de 28 anos, morador de Natal (RN). Com 29 textos, 10 fotos e uma vídeo-performance. O volume retrata o momento que estamos a passar como humanidade, mas também como brasileiros.

'nunca entendo os fuzis
empunhando homens
sedentos pelo fim do turno
ansiosos para que desliguem as máquinas e as luzes
nunca entendo a incontornável incerteza dos ônibus esvaziados deglutindo homens
agora não mais empunhados por fuzis ou calçados por botas
manchadas de um líquido viscoso não autorizado pelo governo federal a aparecer neste poema
não entendo absolutamente nada de fuzis
de botas
ou de líquidos não autorizados
eu apenas observo as coisas enquanto sou empunhado por algo que não consigo
nomear'

Triste História do Fim do Mundo, de Victor Hugo Félix (ed. Penalux) 
 
(foto: Reprodução)
 

A complexidade das mais diversas nuances que compõem a essência do ser humano representadas no dia a dia de uma família à espera da morte, mas desobedece o tempo todo. Em “Triste história do fim do mundo”, Victor Hugo Felix nos convida a uma urgente reflexão sobre a nossa relação com a vida e a morte em um momento cada vez mais solitário do mundo.




 
A cada página desta narrativa, encontramos os dramas e as cores da sociedade contemporânea distribuídos pelas histórias de personagens com perfis completamente distintos que, com as suas particularidades, constituem uma microssociedade que traduz com propriedade os dilemas e questões fundamentais dos nossos dias.
 
Enquanto o fim se aproxima, ao longo de 13 capítulos, o autor nos conduz com maestria a uma viagem pelos sentimentos e pensamentos de cada personagem. Ao mesmo tempo em que assiste cada qual lidando com os fantasmas dos seus medos, sonhos, perdas, inseguranças e frustrações, o leitor inevitavelmente também passa a se questionar sobre o peso real das perdas que todos sofremos ao longo da vida e encara o fato de que, por sermos todos igualmente mortais, o que nos diferencia enquanto indivíduos são as escolhas que fazemos enquanto há vida para viver. Pela qualidade do texto e pela profundidade das reflexões que evoca, “Triste história do fim do mundo” é leitura obrigatória para expandir a compreensão sobre vida e morte. 

audima