Jornal Estado de Minas

DIVERSIDADE

Estão tentando sumir com os corpos gordos e somos cúmplices disso


 
Corpos gordos são grandes. Imensos. Volumosos. E não cabem. Por não caberem, há um exercício social em muitas esferas que tenta combatê-los e, em certa medida, alcança um sucesso absoluto. Estão tentando sumir com nossos corpos gordos e somos cúmplices disso. 





Falo do lugar de uma mulher gorda e periférica. Minha existência é atravessada por estes marcadores - impossíveis de serem ignorados e poder escrever sobre, neste espaço, é não só uma forma de revolução, como também uma tecnologia de resistência e de humanização. 

Poder escrever ao mesmo tempo de um anúncio da criação de um dispositivo fixado entre os dentes de pessoas gordas a fim de evitar que elas comam e assim percam peso compulsoriamente é uma forma de evitar o apagamento a que estamos submetidos, apesar do tamanho considerado exacerbado. 
 
 
Tal dispositivo tem me perturbado de muitas maneiras desde que foi parar na minha timeline. Mas não só. Ele é apenas uma das muitas formas de fazer um corpo gordo sumir. Mais sobre o produto pode ser lido aqui 

Queria começar essa coluna cheia de positividade, no entanto, nesta semana, o anúncio da criação de um dispositivo fixado entre os dentes de pessoas gordas a fim de evitar que elas comam e assim percam peso compulsoriamente tem me tirado o sono. 





O equipamento, que mais lembra a versão 2.0 da Máscara de Flandres, comumente usada em pessoas pretas que foram escravizadas no Brasil, a fim de impedir que elas pudessem falar e/ou ingerir alimentos, bebidas e até mesmo água é técnica de tortura e apagamento institucionalizada pela medicina e pela ciência - que fazemos um esforço imenso para defender, mas que, neste aspecto, compactua com a nossa extinção a partir do que somos. 

O novo dispositivo segue os mesmos moldes de aparatos de tortura medieval e objetiva a castração não apenas física do corpo gordo, mas da subjetividade destas pessoas, que somem e transformam-se numa massa disforme e estatística. 
 
 

Testado em nove pessoas - todas mulheres, o que abriria também o precedente para uma conversa sobre gênero - o dispositivo é fixado entre os dentes a partir de ímãs, permitindo uma abertura controlada da boca, ignorando todas suas outras funções que não comer, tais como falar, gritar, chupar e, pasmem, respirar. 





De acordo com os resultados iniciais da testagem, as mulheres submetidas ao aparelho o fizeram de forma voluntária, em sacrifício científico num vale tudo pelo corpo padrão ou magro. 

O estudo ignora qualquer outro fator que deixe um corpo gordo, como genética, disfunção hormonal, entre outros e atribui, apenas, ao fato de comer alimentos sólidos em excesso a questão e ainda abusa de expressões como “combate à obesidade”, que rechaço, porque além de violento, propõe o extermínio dos corpos gordos e, por conseguinte, das pessoas que vivem neles. 

A palavra obesidade, por aqui, termo médico criado exclusividade para designar doença sobre os corpos gordos não é bem aceito ou empregado, haja vista que patologiza existências em corpos que podem ser e estar saudáveis, ainda que fora dos padrões ou gordos

Conforme nos diz a escritora Grada Kilomba, no livro “Memórias da Plantação”, a máscara (de Flandres) seria uma forma de censura à fala e à enunciação das pessoas escravizadas. Em um paralelo com o dispositivo para evitar que as pessoas comam, entende-se que a mesma, aplicada aos corpos gordos, evidencia esse desejo pela anulação da subjetividade, bem como do sujeito, a partir da limitação da fala e do mantenimento do corpo. 

Indo além , podemos pensar em uma forma de punição aos corpos gordos, que ousam desobedecer os padrões impostos pela magreza e dissidem da norma instituída como o único caminho possível para se viver e merecer a felicidade em uma sociedade marcada pela meritocracia. É quase como se corpos gordos não merecessem existir, já que não são obedientes o suficiente para caberem nos micro espaços destinados aos corpos. 





É exasperador pensar na violência com que somos tratados com a desculpa que “é pela sua saúde”, mas sabemos que a saúde de pessoas magras jamais é questionada, mas a nós, são impostos mecanismos de redução e desaparecimento a qualquer custo. 

Estamos sendo consumidos e mortos por nossos corpos, sem que sequer, tenhamos consciência disso. Para além da normalização das violências cotidianas, que exigem tantas camadas de discussão quanto essa coluna permitir, é importante que estabeleçamos, em linhas mais urgentes, que não é possível compactar com as visões reducionistas, capacitistas, patologizantes e eugenistas sobre nossos corpos. 

Daqui, me despeço deste primeiro encontro feliz - e falante - sem as amarras fixantes sobre minha boca como técnica de tortura medieval, afinal, sempre quis ter uma coluna fixa em um jornal e, para minha absoluta honra, estreio hoje neste espaço para falar de diversidade, especialmente a dos corpos múltiplos, plurais e dissidentes e, abordar tais temas em um país cujo negacionismo é a principal pauta política e a busca incansável pela padronização de comportamentos e existências é uma praxe faz deste espaço DiversEM uma deliciosa contramão. 

Oferecer, a colunistas gordes, trans, pretes um lugar para que suas pautas sejam discutidas é urgente e já está acontecendo. 
 
 
 
Que este também seja um espaço para partilharmos e exercitarmos novas tecnologias de sobrevivência, luta e afeto. Nossos corpos têm pressa de vida. 





audima