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Mineiros vão de Belo Horizonte até o Alasca de moto

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Para o engenheiro aposentado Marcelo Gaio, estrada representa o mesmo que o mar significou para os navegantes portugueses nos séculos 15 e 16. “Um meio de tornar o sonho realidade, encontrar novos modos de viver e culturas diferentes. Um caminho para descobertas”, diz. A mais recente delas foi a viagem de moto até o Alasca, atravessando 14 países, que levou 72 dias e percorreu 29,3 mil quilômetros.





Marcelo viajou acompanhado de César Eduardo Dias Costa. Os dois haviam feito expedições ao Peru, em 2016, e à argentina Ushuaia, em 2019 – esta com o amigo Francisco da Cruz Guimarães, o Chico. Também visitaram o Salar do Uyuni, o deserto de sal boliviano, em 2022.


Marcelo e César se conheceram em Gramado, onde foram a um encontro do HOG (Harley Owners Group), quando andavam de Harley-Davidson. “Éramos uns 15 motociclistas. Na ida, aproveitamos para subir a Serra do Rio do Rastro (SC), passeio que recomendo para quem gosta de pilotar moto. Desde então, temos mantido a relação de amizade e paixão pelas motocicletas”, diz Gaio.


A paixão do engenheiro pelas duas rodas vem da adolescência. Para comprar a primeira moto, deu aulas de matemática. Com a força do pai, conseguiu uma Yamaha 1971 e fez sua primeira viagem a Foz do Iguaçu, saindo de Juiz de Fora, onde nasceu.



Sua primeira viagem de moto, a Foz do Iguaçu, ocorreu em 1975. Ao longo de quase cinco décadas, como você vê a evolução do trânsito e das estradas brasileiras?
Marcelo Gaio – Para ir a Foz, em 1975, foi preciso adquirir competência antes, rodando no entorno da minha cidade com a 125cc, em 1972. Ela foi trocada por uma RD 250cc, da qual tenho saudade. Na década de 1970, não existiam computadores pessoais, celulares ou cartões de crédito. Então, viajar de moto era uma espécie de libertação do cotidiano. Hoje é comum ver as pessoas viajando, de moto ou não, presas à sua própria rotina, concentradas na tela o tempo todo, sem interagir com o entorno. Quanto às estradas, basicamente eram as mesmas naquela época e agora. Com exceção de São Paulo, Paraná e Mato Grosso do Sul. Lá, são mantidas boas estradas. A deterioração da infraestrutura rodoviária é uma coisa triste. Antes, circulavam muito menos veículos do que hoje, a 80 km/h. Hoje, circula quantidade muito maior, a mais de 100km/h, inclusive carretas e bitrens. Então, o perigo de acidente é maior atualmente. Já tive um acidente quase grave, com minha esposa (a médica Hilma Nogueira) na garupa, ela quebrou duas vértebras, indo para Brasília, por falta de sinalização de um quebra-molas, essa “solução” simplista.

 

Marcelo Gayo e César Eduardo Dias Costa na Rota 66, nos Estados Unidos (foto: Acervo pessoal)
 

 

Você tem uma BMW. As motocicletas estão preparadas para as estradas brasileiras?
MG – As motocicletas estão mais do que preparadas para qualquer tipo de estrada, até mesmo as brasileiras. Nossas estradas é que não estão preparadas para elas. 

 

Como foi a aventura até o Alasca?
MG – A preparação começou em 1972, quando comecei o aprendizado sobre duas rodas. Tive ótimo “professor”, um colega de turma que andava de moto há uns anos. Foi com ele que aprendi a prudência e o respeito à estrada. Primeiro vieram as pequenas viagens, depois as médias e as maiores, aí já com a CB 400, moto icônica no Brasil. Depois que conheci minha esposa, em 1980, a maioria das viagens foi com ela na garupa, a despeito da opinião do meu sogro (risos). Fiz alguns treinamentos de técnicas de pilotagem (asfalto e terra) e de manutenção. A viagem foi planejada após a volta de Ushuaia, rota que fiz com dois amigos, o Chico e o César, o mesmo que me acompanhou ao Alasca. Com o sucesso da viagem e a confiança adquirida na moto, achei que dava para realizar novo percurso mais longo, difícil e cansativo. E mais caro também.





 

Marcelo Gayo e César Eduardo Dias Costa nos Andes peruanos (foto: Acervo pessoal)

 

Como a pandemia interferiu no projeto?
MG – Ela nos deu tempo para planejar com mais calma. Isso incluiu obtenção dos vistos para os EUA e Canadá, melhorar a forma de comunicação, elaborar roteiros, checar preços, ler relatos de quem já tinha realizado a viagem, organizar as revisões e troca de pneus para sairmos daqui com autonomia de óleo e pneus compatível com o apoio das oficinas especializadas, principalmente nas Américas do Sul e Central. Levei celular reserva, muito útil quando chegamos ao Equador e descobrimos que o nosso GPS, a princípio atualizado, simplesmente não continha o mapa do país.

 

 

 

Como vocês organizaram as finanças?
MG – Utilizamos dólares americanos em espécie, cartão de crédito internacional e cartão de débito carregado em dólar para pagar ou sacar em qualquer país. Selecionamos a roupa de segurança – bota, calça e jaqueta compatíveis com as condições atmosféricas que iríamos enfrentar. Outono nos Andes a grandes altitudes, primavera e verão no hemisfério norte. Boa parte da América Central tem baixa altitude em relação ao nível do mar, o que contribui para que a temperatura seja bastante alta, mesmo na primavera. E temos de estar preparados também para chuva, vento e frio. Não um frio intenso, porque programamos chegar ao Alasca no verão do hemisfério norte. Nos Andes, a temperatura nas grandes altitudes, mesmo na primavera, beira o zero. No Alasca, ela não desceu abaixo de oito nas horas em que estávamos na estrada. 

 

Mais preocupado em comer, urso americano não deu a menor bola para os motociclistas brasileiros (foto: Acervo pessoal)
 

 

Como foi enfrentar os desafios do corpo e da mente?
MG – O corpo precisa estar apto a suportar os esforços de pilotar o dia inteiro, sob sol e chuva. E a mente também. Talvez seja a mente que comanda, na verdade. Mantive e intensifiquei um pouco minha rotina de exercícios físicos, respeitando o corpo e seus sinais. Comecei a mentalizar a viagem e ensaiar minhas reações a possíveis adversidades. Foi como a meditação diária, não entendo muito bem disso, mas um tipo de treinamento para entrar no estado de fluxo. Levei farmácia de bordo, com remédios para desconforto intestinal, resfriado, antibióticos para inflamação de garganta, primeiros socorros, essas coisas. Um simples resfriado, numa viagem como esta, é grande contratempo. Imagine ter que ficar de repouso uns dias no hotel, sabe-se lá onde, nem sempre com boa estrutura, até que o mal-estar passe e te dê condições mínimas de pilotar com segurança. Então, preparei-me para ter comportamento espartano e não dar chance ao azar. A lei de Murphy está sempre à espreita.





 

 

 

E deu certo?
MG – A preparação funcionou. Nenhum problema ao longo do percurso, a não ser pequenos distúrbios intestinais, corrigidos com um simples comprimido de carvão, muito mais pelo calor e desidratação do que pela comida, acho. Isso só ocorreu umas duas ou três vezes. E a ameaça de inflamação de garganta, devido à variação brusca de temperatura quando entrávamos em algum local com ar-condicionado. Passei a evitar ar-condicionado. Sentir um pouco de calor não mata ninguém, afinal. Por fim, há um item de suma importância: tratar do assunto com a família, principalmente a esposa. A minha deu a maior força, desde os primeiros momentos da preparação. Filhos, idem. Não escutei nem um comentário negativo que pudesse abalar minha autoconfiança! Esse foi um pilar que sustentou minha determinação ao longo do percurso.

Quais foram os momentos mais bonitos e os mais difíceis ao longo do caminho?
MG – Momentos bonitos, quase todos os dias. Principalmente para mim, que curto muito mais o caminho do que o destino. Sempre foi assim nas viagens de motocicleta. Paisagens, comidas típicas, interação com pessoas locais e com outros viajantes motociclistas. Boas estradas, desde que saímos do Brasil pela rota do Acre. O altiplano dos Andes peruanos é de uma beleza quase mágica. Ruínas de antigas civilizações no Peru e Guatemala, a cratera de vulcão com rochas incandescentes na Nicarágua, o contorno do Golfo do México, as formações rochosas no Utah, as sequoias gigantes da Califórnia e as paisagens do Noroeste canadense, repletas de lagos, florestas e montanhas de cume nevado. Além da proximidade com um urso no Yukon, que pastava tranquilamente à margem da estrada e nem se incomodou quando parei a moto, com o motor ligado para o caso de ele não gostar de mim, para observá-lo de perto.

Durante jornadas assim, dá para ter contatos legais com as outras pessoas?
MG – Houve esses momentos de interação. Um deles quando um motociclista americano que estava indo para o norte, de onde já estávamos voltando, veio conversar comigo no estacionamento do hotel para se informar sobre os pontos de abastecimento. Contou-me sobre o seu mau dia. Tinha ficado sem gasolina e deixado a moto tombar. Tudo o que não queremos que aconteça ocorreu com ele. A simplicidade ao confessar os erros e sua conversa franca foram o ponto alto do meu dia.





 

Houve perrengues?

MG – Posso citar o último trecho no Peru, quando tínhamos optado pela fronteira com o Equador mais próxima de onde havíamos pernoitado. Chegar na fronteira mais cedo é importante, porque nunca se sabe o tempo que vai ser gasto com a burocracia nas aduanas da América Latina. A estrada era atravessada por pequenos riachos. Atravessamos o primeiro, o segundo. O terceiro já com água e lama. No quarto, havia pessoas locais com enxadas tentando fazer trilha sob a água. Até que, na quinta travessia, nossa avaliação de risco e benefício nos levou a optar por voltar e tomar outra estrada, que nos levaria a uma fronteira mais distante. Chegaríamos já à tardinha. Outro ponto tenso foi quando fizemos uma escolha errada e tivemos que percorrer quase 100 quilômetros de estrada não pavimentada, bastante isolada, a cerca de 30 km/h. A certa altura, meu companheiro, que estava mais distante, percebeu a moto que o seguia. Avisou-me pelo rádio. Eu disse: ou você acelera e ficamos livres ou deixe que passe para resolvermos a questão. Reduzi a marcha, para que ele e a moto que o perseguia ficassem mais perto. Quando olhei pelo retrovisor, eram três em uma moto. Fiquei tranquilo, pois se equilibrar numa estrada dessas já é difícil com um, com dois na garupa seria fácil dar o “chega pra lá” neles e derrubá-los, caso tivessem más intenções. Quando ultrapassaram meu companheiro, deixei que emparelhassem comigo, já com meu plano de defesa preparado. Vi que não era nada daquilo que nossa imaginação, provavelmente contaminada por experiências negativas de outras pessoas, nos fazia supor. Eram apenas garotos querendo ver as motos de perto. Acenei para eles, que retribuíram de forma efusiva, como nos desejando boa viagem. Seguimos nosso caminho. Eles o deles, provavelmente felizes. E nós, aliviados e um pouco envergonhados de pensar mal de quem nem conhecíamos. Esse incidente está nos meus “relatos de viagem”, livro que estou escrevendo com base no meu “diário”. Pretendo distribuí-lo aos familiares e amigos. Apenas para marcar a viagem, não tenho pretensões a me tornar escritor (risos)

 

 

 

Em setembro, você vai ao Porto de Santos (SP) buscar sua moto, que vem de Vancouver, no Canadá. Quando ela chegar, você já tem nova viagem marcada?
MG – Primeiro, tenho de buscar a minha “companheira fiel” no porto e trazê-la para a garagem. A previsão de chegada do navio é início de setembro. Vou fazer uma boa limpeza nela, desmontar as partes e limpar cada uma, para deixá-la bonita como era antes. Depois, vou levá-la para a revisão mecânica, as trocas de óleo e filtros e as regulagens de rotina. Só depois disso vou pensar nas próximas viagens. Há uns lugares na Argentina onde quero ir, mas vou organizar para que as viagens caibam no período de 15 a 20 dias, o máximo que minha esposa pode se ausentar do trabalho. Para que possamos ir juntos. Minha esposa é ótima garupa. Além de não reclamar do desconforto, gosta de viajar de moto. Sou um felizardo!

Quais são os números desta jornada até o Alasca?
MG – Percorremos 29.325 quilômetros. Quando for buscar minha moto em Santos e voltar a BH, terei completado os 30 mil. Total de gasolina gasta: 1.384 litros. Rodamos 72 dias. Foram 23 dias parados para turismo, descanso e transposição do Darien, pois entre a Colômbia e o Panamá não há estrada transitável, é preciso embarcar a moto no avião. Por dia, percorremos, em média, 407 quilômetros. Eram sete horas e meia diariamente. Mas teve dia com quase 12 horas, outros com pouco mais de três horas. Passamos por 14 países: Brasil, Peru, Equador, Colômbia, Panamá, Costa Rica, Nicarágua, Honduras, El Salvador, Guatemala, Belize e México. Nos Estados Unidos, cruzamos Texas, Novo México, Colorado, Utah, Arizona e Califórnia até chegar ao Alasca. No Canadá, passamos pela Colúmbia Britânica e Yukon.