Jornal Estado de Minas

BLOCO NA RUA

O dia em que a ameaça de moradores do Gutierrez a carnavalesco virou samba

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Matheus Brant
Músico e advogado

Era início de 2017, e eu, Eduardo Faleiro e Renato Rosa rodávamos o bairro Gutierrez à procura de um lava a jato, estacionamento ou oficina mecânica que pudesse abrigar um ensaio do bloco de carnaval de rua que havíamos criado há três anos, o Me Beija Que Eu Sou Pagodeiro. Como o bloco fazia seu cortejo no bairro, nossa ideia era de que os ensaios também se dessem lá e em lugares que as pessoas frequentavam no seu dia a dia.





Na verdade, olhando com distância, penso que intuíamos algo que estava no “espírito do tempo” daqueles anos de retomada do carnaval de rua em BH e outras cidades: o desejo de ocupar espaços impregnando-os de vida, cultura e música em contraste com o cimento, asfalto hostil ao convívio coletivo. Com Julián Fuks: “Ocupar espaços materiais para tratar de reconstituir, insuficientemente, tudo de imaterial que nos tem sido destituído. Ocupar espaços diversos, escolas, institutos, prédios vazios, ocupar para povoá-los de vida e pensamento.”

Encontramos o lugar que nos pareceu perfeito: um estacionamento na Avenida Francisco Sá, quase esquina com a Avenida Amazonas, amplo e arejado. No dia, um domingo à tarde, além da bateria do bloco, o público lotou o espaço e muita gente ficou de fora, na rua. Encerramos o ensaio, mas muita gente ainda ficou na rua bebendo e dançando ao som de carro automotivo.

A PM foi chamada e, como de hábito, dispersou o público com uso desproporcional da força. No mesmo dia, mais tarde, recebi em meu e-mail pessoal duas ameaças, uma delas dizia assim:
“Garoto Matheus, nunca mais atrapalhe a tranquilidade da Rua Bernardino de Lima, no Gutierrez, com seu desordeiro bloco de carnaval. Aqui é um bairro de classe média alta, com pessoas que integram cargos de autoridade nos Três Poderes. Não queira arrumar problemas com quem é muito superior a você em influência e justiça. Gostou da atuação da PM hoje? Na próxima vez, o serviço da PM será mais completo. Não volte nunca mais. Está avisado.”





No dia seguinte, a imprensa me procurou para saber sobre o ocorrido no ensaio do bloco, ao que respondi encaminhando às redações prints de ambas ameaças recebidas por e-mail. Vários veículos reproduziram as ameaças – inclusive este jornal –, e a coisa viralizou. Blocos e protagonistas do carnaval de BH se posicionaram se solidarizando com o Me Beija e comigo.

Ainda ganhei um presente para a vida toda – e um apelido: o músico Thiago Delegado compôs um samba sobre o fato e acabou lançando, no ano seguinte, em disco: “Garoto Matheus/ grande desordeiro/ só porque assume que é pagodeiro/ tá cheio de gente puxando sua rédea/ no bairro careta lá da classe média/ Garoto Matheus/ muito abusado/ acha que a rua é do povo, coitado/ de olho em você, estão os Três Poderes/ podando sem dó todos os seus prazeres/ Matheus garotamente recusou ser BBB/ nosso galã hipster ignora a tevê/ Matheus que só queria beijar no carnaval/ recebe ameaça no e-mail matinal/ E eu do alto da minha patente/ decreto sem dó e muito contente/ está condenado em minha delegacia/ Seu delito, garoto: espalhar alegria/ Seu delito, garoto: espalhar alegria”.
 

 

Passados cinco anos dessa história de carnaval, penso não ter sido coincidência que tudo isso se deu em 2017, ou seja, um ano depois do golpe que depôs a presidenta Dilma e um ano antes da eleição de Bolsonaro.




Era um prenúncio do que viria a ser o bolsonarismo, avesso a tudo aquilo que lhe é diferente, como um narciso de coturno que não suporta a alegria alheia porque, no fundo, é triste e só: mora no bairro, tem amigos “nos Três Poderes”, mas ninguém o chama para ir um ensaio de bloco num domingo à tarde.

Como escreveu Antonio Prata: “Impedido de saborear a vida por um tenebroso aleijamento existencial (...) existe como um buscapé, usando o fogo que arde dentro de si pra queimar as canelas alheias. Se pudesse, multava assovio, taxava beijo, proibia a aurora, revogava o crepúsculo, emparedava o vento e selava o sol com insulfilm. Mas não pode. Ele é triste, fraco e burro. Vai acabar mal e só como um vilão de desenho animado.”

A SEÇÃO “BLOCO NA RUA”, PUBLICADA AOS DOMINGOS NA COLUNA HIT, TRAZ TEXTO SOBRE O CARNAVAL ESCRITO POR UM CONVIDADO E FOTO DE FOLIAS DE OUTROS TEMPOS