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Estado de Minas QUAL É A MÚSICA?

''Cálice'', canção marcante dos anos de chumbo da ditadura, permanece atual

Roger Deff, rapper e jornalista, afirma que os versos de Chico Buarque nesta parceria com Gilberto Gil alertam para a importância de defender a democracia


12/09/2021 04:00 - atualizado 12/09/2021 07:31

Roger Deff
Rapper e jornalista

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 “Cálice” foi composta por Chico Buarque e Gilberto Gil em 1973, mas lançada somente em 1978, nas vozes de Chico e do gigante Milton Nascimento. Entre as canções gestadas durante o período da ditadura militar, ela está entre as minhas favoritas, principalmente pelo jogo de palavras, no qual o cálice escrito como referência ao objeto falava da verdade do “cale-se” imposto pela censura ditatorial dos anos de chumbo. Ao mesmo tempo, o cálice “de vinho tinto de sangue” remete às torturas, desaparecimentos e horrores daqueles dias.


Não me lembro exatamente de quando aconteceu o meu contato com essa canção. Em casa, meu pai era adepto dos boleros, sambas e serestas, então só fui ouvir “Cálice” devido à minha relação com o rap.

Explico: alguns dos rappers e DJs que conheci tinham forte relação com a música popular brasileira, entre eles o DJ Tobias, amigo integrante da banda Julgamento, com a qual iniciei minha caminhada no hip-hop. Foi ele quem indicou o clássico da MPB, bem no começo da minha prática como MC.

Embora já conhecesse a canção, foi só a partir da nossa conversa que atentei para o impacto daqueles versos, do que estavam falando. E foi assim também que me aproximei da obra de Chico Buarque. “Cálice” foi sampleada por Gabriel o Pensador na faixa “Abalando” (1993), em que ele fala justamente sobre a censura.

Minhas primeiras letras, nas quais falava abertamente sobre o racismo, sobre liberdade de expressão e sobre as disparidades sociais, eu escrevia com a liberdade de quem não precisava se preocupar com perseguições, algo possível apenas na democracia. Não era esse o contexto vivido por Chico Buarque e Gilberto Gil durante aqueles dias estranhos.

Me impressionavam, e ainda impressionam, as saídas encontradas por eles para abordar questões urgentes, o que resultou nessa poética que mesmo narrando um momento tão complicado da nossa história, é tão bonita em sua forma.

“Como beber dessa bebida amarga/ Tragar a dor, engolir a labuta/ Mesmo calada a boca, resta o peito/ Silêncio na cidade não se escuta (...)”

Anos depois, vivemos um momento em que as liberdades voltam a ser ameaçadas. Hoje, há pessoas que, estranhamente, se dizem saudosistas de um tempo sem democracia, de medo. Viver isso hoje é assustador, mas nada se compara ao que foi aquele contexto do AI-5, dos direitos civis suspensos, das perseguições.

Décadas após a redemocratização, o fantasma da censura ainda paira por aí e a perseguição se dá de forma velada, o “cale-se” encontra várias maneiras de persistir. E nós, artistas, jornalistas, ainda precisamos driblar as armadilhas do discurso reacionário e a visão limitadora dos que querem o mundo em silêncio, sem as vozes dos descontentes, silenciando as pautas das “minorias”.

Em tempos de bolsonarismo, retóricas que todos julgávamos superadas, dado o grau de atraso, mediocridade e barbárie que representam, se mostram mais vivas do que era possível imaginar, trazendo a lição de que as lutas pelo direito à voz, pelo direito à existência, são uma constante.

Nas periferias do Brasil afora, a democracia, com a ideia de cidadania plena, se manteve distante da prática cotidiana. Mesmo com alguns avanços anteriores, a falta de acesso, a violência do Estado e a impossibilidade de reivindicar direitos mostram um país que jamais acertou as contas com o seu passado.

“Cálice” seria uma obra atual de qualquer maneira, pelas metáforas que evoca pela liberdade, mas, infelizmente, segue atual pelos avanços que não conseguimos promover enquanto sociedade.

“Como é difícil acordar calado/ Se na calada da noite eu me dano/ Quero lançar um grito desumano/ Que é uma maneira de ser escutado.”

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