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Estado de Minas COLUNA HIT

A senhorinha, o dotôri e a pandê

No 'Diário da quarentena', a escritora Maria do Carmo Brandão relembra a história de ribeirinhos no Amazonas que a emocionou


25/09/2020 04:00

Diário da quarentena

Quarentena  que não acaba

Maria do Carmo Brandão
Escritora

A gente é idoso – ou quase – e fica naquela de imaginar que vai aguentar melhor o tranco, pois como já viveu muito (muitíssimo), terá um olhar mais condescendente com ela, a pandê. É, eu a apelidei de pandê, pois pandemia é palavra longa e vem embutida nela a ideia do esticamento por que a gente ainda deverá passar.

Horrorizo-me todas as manhãs quando acordo e escancaro as duas janelonas: nada de novo no front. Tudo talqualmente como no dia 15 de março deste fatídico ano de 2020, em que ordens vieram, “de cima”, de que não poderíamos nos juntar mais. De que deveríamos, para o bem do povo e de toda a nação, evitar aglomerações de qualquer tipo ou densidade fosse. Mais à frente, impuseram-nos a não saída de casa – a que deram o belo nome de isolamento social, distanciamento social, até chegar à feiíssima palavra quarentena.

No início vai-se bem. Algo novo e destoante a tudo a que já nos obrigaram um dia na vida. Primeira, segunda, quinta semana, aí cai sobre nossas cabecinhas o número 100 (dias). E aí, bem, a cousa ferve. A cousa chacoalha dentro do cérebro, ressoando nos tímpanos e que reverbera pras orelhas, o som. São 100 dias, não 10 ou 40. Jesus me abane, que faço eu, aqui? Melhor: O que não faço (eu), aqui, Jesus?.

Sem meu filho e minha nora, sem meus amigos queridos, restam-me o WhatsApp, o Facebook, Instagram e, óbvio, aquele objeto estranhíssimo atrelado à parede, cuja campainha, quando toca, a gente atende. Ah... atende pelo nome de telephone fixo (melhor que eu o escreva assim, com ph, pra denunciar sua antiguidade).

Saímos às compras, dia sim, dia, não. Tipo rapidinho, vapt-vupt. Medem-nos a temperatura à entrada, dão-nos papel e álcool em gel para higienizar os carrinhos. Assim feito, cabe a nós derramar o tal gel pelas mãos e as limpar bem direitinho. De máscara já estamos e (se) nos acrescentam um par de luvas pra que escolhamos e peguemos os alimentos comprados, com segurança. Aí, vai-se pro caixa, o qual felizmente anda bem rápido, poucas são as pessoas ousadas a sair de casa e a fazer algo que não seja uma voltinha no quarteirão ou uma comprazinha básica.

Para não prosseguir no óbvio, já que tudo o que disse aqui todo mundo sabe, quero relatar o que vi num programa très intérèssant da CBN, no qual um médico e alguns assessores – de bote!, vejam bem, ou pouco mais que isso – adentram o Rio Amazonas pra buscar, nas populações ribeirinhas, prováveis infectados, uma vez que ali falta tudo, especialmente saúde, ou cuidados com ela.

(E aí eu me refiz. Gargalhei. Claro que o trabalho deles é de uma importância e seriedade impensáveis. Admiro-os, agradeço a Deus fervorosamente por eles existirem.)

E vão. E estacionam o barco. E descem com seus aparatos de astronauta. Nada se vê do rosto deles, do corpo, invisíveis como a COVID.

Fazem os testes, acusam os negativos e os positivos. Medicam. Dirigem-se àquele pessoal com uma delicadeza de anjos, só.

Quando então, na última senhorinha, de cabeça baixa, “pinta” o seguinte diálogo:

– A senhora tá bem?

– Tô, sim sinhô.

– A senhora sente alguma coisa?

– Como, assim? Muita coisa a gente sente, ué.

– A senhora sabe o que é distanciamento social?

– Não, sinhô.

– Isolamento social?

– Não, sinhô.

– Coronavírus, a senhora já ouviu falar?

– Não, sinhô.

Sempre de cabecinha mais pra baixo, a moradora dos igarapés dum lugar chamado Manguaço, no final do fim do final do mundo, lá nos confins do judas, dá pro dotôri um sorrisinho lindo, limpo e sapeca:

– Aqui a gente tá sempre bem, sodotôri, sá pruquê? Prumode que o Pai lá em riba (aponta com o dedinho) sempre toma conta de nosis.

O dotôri olha para a câmera que o filma, fazendo a matéria.

Há um sorriso, percebe-se, por detrás da máscara. Sorriso bom.

Mas também lágrimas se soltando e escorregando por cima da máscara, que nem tobogã.

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