Diário da quarentena
Parece um pouco utópico!
Álvaro Gentil
Editor
Pois é, acho que estou meio perdido com essa história de pandemia, tenho conversado muito comigo mesmo, o que não é ruim, mas também tenho sentido muita falta de outras vozes.
Vou confessar um segredo e pode parecer que estou ficando meio maluco: criei alguns personagens com personalidades distintas, vozes diferentes e rotineiramente dialogamos.
Hoje, logo cedo, acionei um deles, José, um apaixonado por filosofia. A conversa foi excelente, durante um bom tempo filosofamos sobre a vida, o amor, os sonhos e o desejo que logo chegue ao fim este período meio estranho. Ao final de nossa prosa, quase todos os problemas estavam resolvidos, as esperanças e desejos haviam sido renovados.
Há também uma voz feminina, Maria, grande companhia, uma apaixonada por música. Trocamos considerações e gostos sobre gêneros musicais, ouvimos alguns vinis e, claro, discordamos em opiniões. Ela, ouvinte rotineira de clássicos e jazz, critica minha persistência em ouvir rock dos anos 1950 e 1960. Quase sempre chegamos a um acordo, eu ouço alguns clássicos e coloco um ou dois vinis de rock para ela.
A terceira voz é Pedro, uma figura muito presente em meu dia a dia. Sua voz é terna e suave como seus hábitos: cultivo de plantas domésticas e culinária. Quando as aflições e angústias próprias dessa nova ordem se aproximam, recorro-me a Pedro, que me orienta com excelentes dicas sobre como usar ervas e especiarias de maneira harmoniosa, e sobre o poder terapêutico do hábito de cuidar de plantas diariamente. Segundo ele, há uma recíproca. Na verdade, elas retribuem o cuidado trazendo tranquilidade e equilíbrio.
Como não poderia deixar de ser, sempre há o indesejado e, nesse caso, trata-se de alguém que mesmo não sendo bem-vindo insiste em aparecer vez ou outra. Ele não tem nome, sua presença é marcada apenas por uma voz em tom um pouco grave e pausada. Faz questão de valorizar e lembrar-me as dificuldades, incertezas e sofrimentos vivenciados por todos neste momento. Finjo que não o ouço e sigo em frente. Algum tempo depois reconheço a importância de suas palavras para seguir com prudência e atenção.
Mesmo caminhando sempre amparado por vozes que encorajam, em muitos momentos fica difícil e aflitivo o convívio com este período de nuvens escuras e nebulosas. Tanto que, às vezes, até pensar com boas expectativas e esperanças torna-se quase um exercício de fé.
Porém, sou um adepto incorrigível de que as coisas melhorarão após a pandemia. Parece um pouco utópico, e na verdade é!