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Estado de Minas COLUNA HIT

Do glamour dos salões à dura realidade destes tempos de pandemia

O escritor Vander André Araújo narra, no 'Diário da quarentena', uma história de sonhos e desejos


15/08/2020 04:00

Baile de máscaras
 
Vander André Araújo,
Escritor e estudante de filosofia

Que ela sempre quis usar máscara, eu já sabia. Era um desejo antigo, desde que tinha visto as senhoras de alta estirpe circulando extasiadas no salão imenso do Automóvel Clube, naquela noite fantasiosa de carnaval. O que não esperava era que fosse multada em R$ 100, semana passada, pelos fiscais da prefeitura, por não estar usando a sua máscara de pano, mesmo alegando que a tirara por alguns minutos, apenas para fumar.

Estava de serviço no dia do Baile de Máscaras, cumpria a sua rotina de higienizar os banheiros incessantemente, cuidando para que as convidadas se sentissem mais à vontade no toilette, pudessem retocar a maquiagem, ajustar a roupa, trocar confidências sobre os rapazes, comentar sobre os dotes, definir estratégias para o jogo de sedução que rolava solto.

Ficava estática quando as via chegar em duplas, aos risos e semiembriagadas. Ninguém a enxergava ali, encostada no canto, de uniforme cinza, agarrada à vassoura e ao rodo, com o pano de chão no ombro. Parecia querer se mimetizar com o gelo da tinta da parede.

As outras mulheres, por sua vez, usavam máscaras finas, venezianas, os cabelos estavam bem cortados e com penteados da moda. Ela observava tudo aquilo com enorme interesse, ainda não havia completado 18 anos, mas sonhava com o dia em que pudesse usar um vestido caro, de tafetá, participar de uma festa com pompa e circunstância e, quem sabe, de quebra, conquistar um marido rico.

O que eu não podia imaginar era que seus planos seriam destruídos aos poucos, ao longo dos últimos trinta e tristes anos, seguindo a sina de miséria e abandono, típicas lá do Aglomerado. Ela não conseguiu terminar os estudos, viu-se órfã à época ainda do famigerado baile e teve de ir à luta para sustentar os dois irmãos mais novos, que, como ela, tinham muita fome e sede de justiça.

Ela não podia recusar nenhum tipo de oferta de trabalho, de bicos de serviço pesado, faxina geral e babá a balconista do bar do Mercado Central, onde atraía turistas para uma cervejinha com fígado com jiló gritando frases sedutoras, como quem faz comercial de espaços no paraíso. Comprava ouro na Praça Sete, fazia propaganda de dentistas no Centro da cidade, vendia paçoca, bala e chicletes dentro dos ônibus, acostumada às caras de desprezo ou comiseração.

O que eu não podia imaginar era que iria encontrá-la, já no auge dos seus 50 anos dourados, tez enrugada, tosse frequente, num daqueles casarões dos prazeres masculinos na Rua dos Guaicurus, cumprindo sua jornada de trabalho numa das noites frias de junho, em que toda a gente de posses se isolava em casa, cumprindo à risca a determinação do isolamento social, pedindo comida pelo aplicativo e se comunicando por smartphones.

Para espanto geral, estava proibida a atividade não essencial, e o prefeito mandou fechar tudo, uma vez que o risco de contaminação pela COVID era alto na cidade. Mas ela e suas meninas não podiam parar. Como conseguiriam sobreviver sem uma renda mínima, valendo-se apenas do auxílio emergencial de R$ 600, após horas na fila do banco, respeitando o distanciamento? Além disso, havia a demanda reprimida, os homens não ligavam para essas tais questões sanitárias, o que lhes interessava era saciar seus desejos frequentes, independentemente do risco que já estavam habituados a superar e desdenhar, pois temer a morte era “coisa de viado”.

Foi então que, novamente encostada à parede daquele prostíbulo sem muito luxo, mas muita luxúria e cor, no qual fazia as vezes de proxeneta, Bhaskara se recordou de suas raízes, como que solucionando finalmente a equação do seu sonho antigo de usar máscara e esconder sua beleza rara. Talvez tenha sido influenciada pela multa que havia recebido, logo cedo, quando saiu para comprar camisinha e álcool em gel.

Chamando uma das prostitutas da casa, que ali se encontrava misteriosamente naquela noite, ela pediu emprestada a fantasia da Tiazinha. Mascarada, sentiu um certo alívio por poder dispensar a maquiagem carregada e, desta forma, conseguiu disfarçar os efeitos corrosivos da idade, antes que a morte a levasse, naquela ambulância, impiedosa, enfim.


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