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Estado de Minas

Livros são abrigo fora dos muros da cidade contaminada

Para professor Wander Melo Miranda, abre caminhos no lusco-fusco do acender e apagar de vaga-lumes que não existem mais na cidade enclausurada


24/07/2020 04:00

Diário da quarentena

Vida futura

Wander Melo Miranda
Professor emérito da UFMG e membro da AML

"Da janela, vejo pessoas que passam silenciosas pelo meio da rua, de máscaras, cabeça baixa... Desfrutam da caminhada, uma afirmação da liberdade em tempos de confinamento"


Da janela – moro de frente a uma pequena mata –, vejo pessoas que passam silenciosas pelo meio da rua sem carros, de máscaras, cabeça baixa. Parecem sobreviventes atônitos de uma catástrofe nuclear, não fossem tão verdes as árvores, tão azul o céu e claro o sol de inverno. Desfrutam da caminhada, mais do que um exercício físico, uma afirmação da liberdade de se moverem em tempos de confinamento. Mas é um ir e vir sem rumo, como se não saíssem do lugar. Não há para onde fugir, a clausura é planetária.

Os entregadores motorizados circulam com suas máscaras, capacetes e luvas, parecem saídos de um filme meio apocalíptico, por isso tão real. A nota dissonante: de vez em quando – lépidos – esquilos dão as caras por entre os galhos das árvores.

Volto para meus livros como se corresse para fora dos muros da cidade contaminada. Anacrônico personagem de Boccaccio, me salvo da peste – até quando? – pelas histórias que leio atento, como se escritas de propósito para mim. Uma, que me atrai muito, fala de um estranho casarão perdido no sem fim de antigas plantações de café, onde senhores e escravizados, há mais de 100 anos, travam uma surda batalha que dura – hélas! – até hoje sob o signo de uma menina morta multiplicada, sem tréguas, por balas perdidas. Passado e presente se misturam no horror de uma escondida presença que se mostra hoje sem máscaras ou, com elas, em busca da saída que tarda e falta.

Brancos ainda mantêm, redobrada, a distância social que sempre os favoreceu. O vírus continua seu trabalho implacável, agora estridente. O luto prossegue. Nosso dissenso original se cumpre, repetitivo, na espalhafatosa dança de políticos safados e generais analfabetos, diria Graciliano Ramos, preso de verdade háquase um século. Tudo passa tão rápido e continua, porque “não podes, sozinho, dinamitar a ilha de Manhattan”, acrescentaria Drummond. Por enquanto não é tempo de poesia nem de revolução, estamos mudos e inertes, enredados em consolatórias conversas virtuais. E agora, José? A festa nem começou.

Aos poucos, sem estardalhaço, a leitura vai dando pistas, abrindo caminho no lusco-fusco do acender e apagar de vaga-lumes que não existem mais na cidade enclausurada. Brilham com sua luz intermitente entre páginas e letras revisitadas ou lidas pela primeira vez, deixam ver por instantes a cidade invisível, a cabralina nuvem civil sonhada. Sobreviver à agonia é nossa missão mais urgente, vamos de mãos dadas, de novo com Drummond: “– Ó vida futura! nós te criaremos”.

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