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A dor sem direito ao grito, a voz sem direito ao reconhecimento histórico

No Diário da quarentena, o pesquisador Pedro Vasconcelos diz que a felicidade não vem da voz da moça da propaganda de banco, que diz que tudo isso vai passar. A felicidade é política


postado em 06/07/2020 04:00

Pedro Vasconcelos
Documentarista e pesquisador

Há muita pressa nas tentativas de mensurar este absurdo pandêmico. Números e rostos estampados ao final de cada edição do Jornal Nacional não dizem, ou pouco dizem, sobre aquilo que é incapturável no sofrimento anônimo – a dor sem direito ao grito, a voz sem direito ao registro e ao reconhecimento histórico.

Para o escritor franco-argelino Albert Camus, o absurdo é o abismo que se coloca entre o nosso desejo de dar sentido à vida e o mundo que não nos escuta. Um universo sem desígnio – com ou sem pandemia –, mas que agora escancara nossa solidão.

Os jornais me atravessam com imagens dos Boeings cheios que caem todos os dias por aqui. Logo os aviões, que desafiam a surdez da natureza com propulsão e aerodinâmica. Miramos os pássaros e os projetamos, nos esquecemos das penas.

Penso no meu medo de voar. No absurdo que é voar. Do voo que me trouxe de Belo Horizonte para Porto Alegre há três anos. No sentimento de exílio que me acompanha desde então, e que se intensifica com o isolamento, um moedor de remorsos, neuroses e de muitos “e se?” que se multiplicam ao anoitecer.

À deriva, a proa do nariz entrará em um vento cruzado a qualquer momento. Os pilotos movem os lemes a fim de evitar que o vento o faça desviar do seu rumo. Os controladores de voo, perversos, agravam as condições de navegação e se negam a dar as coordenadas para que possamos sair desta tempestade.

É um voo sem destino e nele nada está tão certo que não possa virar de cabeça para baixo ou explodir quando o rarefeito do ar nos pousar em silêncio em um solo seguro.

Não quero dizer que estamos todos em uma mesma aeronave, ou, ainda, em situações meteorológicas análogas. Há quem esteja passando por esta tormenta em jatos supersônicos, outros que planam em um céu limpo de brigadeiro. Tem para quem falte combustível, paraquedas, e tem aqueles que, como Ícaro, voaram alto demais e observam agora as suas asas incendiadas.

Olho para o lado antes de explodir solitário. Nos assentos mais próximos é preciso visar o ombro firme de que tem estado sempre ali, neles há poesia. Somente com o outro é possível prospectar um futuro em um tempo sem presente.

Olho para a criança que desenha seus medos em uma folha ofício para tentar nos explicar o que se passa. São dragões, zumbis e um medo danado de ir ao banheiro sozinho quando a casa está vazia. Ainda bem perto, um velho enfrenta a morte com a coragem e sabedoria de quem já passou por turbulências mais assustadoras.

Nos assentos desconhecidos, antes distantes, reconheço o esforço daqueles que não podem permanecer sentados. A mãe que vai para a linha de frente trabalhar, a paralisação dos entregadores, que reclamam dignidade, e os negros, historicamente excluídos dos planos de voo e que há muito tempo esperam e lutam por rotas mais justas.

A felicidade ao alcance não é publicitária. Não vem da força de vontade da voz embargada da moça da propaganda de banco, que diz que tudo isso vai passar. A felicidade é política e ninguém pode ser feliz sem que haja felicidade no outro.

O tempo rebenta como este avião. O tempo, esta besta sem direção. Me acomodo ao seu lado. Os trens de pouso precisam tocar o solo.

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