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Estado de Minas COLUNA HIT

Em 95 dias de isolamento, somos todos iguais em nossas ansiedades

No 'Diário da quarentena', o dramaturgo Mauro Alvim conta uma história que poderia ser vivida por qualquer um de nós


postado em 19/06/2020 04:00

Diário da quarentena

Bom-dia

Mauro Alvim
Dramaturgo

– Bom-dia.

– De novo?

– Te cumprimentei antes e você não respondeu.

– Não ouvi.

– Você só ouve o que te interessa, não é?

– Você fala pra dentro.

– Quer que eu grite? Só nós dois nessa casa, nem um movimento de carro na rua, não é possível que você não ouve.

– Sabe o que você tá parecendo? Aquelas apresentadoras de televisão que dão bom-dia para a plateia e depois reclamam: “Nossa, acho que ninguém lanchou hoje! Que bom-dia fraco! Quero ver entusiasmo. Bom-dia!”. Aí a coitada da plateia tem que gritar: 

“Bom-diaaaa...!”

– É assim mesmo?

– Não, o pior é depois. Ela vira e fala: “Tá ótimo, mas a gente pode melhorar! Vamos soltar toda a alegria lá de dentro e gritar bem alto: “Bom-dia, minha gente!”. Aí lá vai a plateia ter que esgoelar no bom-dia, para garantir o cachê da apresentadora e ela falar: “Assim! Assim que eu gosto, vamos começar nosso programa com alegria!”

– Então está bem. De hoje em diante, a gente fala oi um para o outro e está de bom tamanho.

– Bom tamanho? Tá é péssimo! Oi só tem duas letras e você me diz que está de bom tamanho?

– Ah, pronto! Lá vamos nós começar outra discussão. Preferia estar presa numa penitenciária do que aqui na minha casa com o meu marido!

– Mas você acha ruim com tudo! Tudo é motivo pra se encrencar! Feito aquele dia em que esbarrei no dedinho do seu pé.
– Esbarrou? Você pisou nele como se mata uma barata!

– E quem manda você ficar andando descalça por aqui com os pés arreganhados tipo dez pras duas?

– A casa também é minha, você me dá licença? Ou vai querer que eu ande de salto?

– Olha... quer saber de uma coisa? Enquanto essa epidemia continuar, acho que vou pra rua ser mendigo! Morar debaixo de marquise, sabe?

– E arriscar a pegar um coronavírus?

– Isso é que não! Você já ouviu falar que mendigo foi contaminado? Que mendigo deu entrada no hospital? Que morreu? Dá uma volta de carro aí pela rua e vai ver todos eles nos mesmos lugares de sempre.

2

– Ora! Então você descobriu a cura pro vírus! Tira patente disso e vamos todo mundo pra rua. Vai todo mundo ficar curado, não vai ter fome...

– Se não vai ter fome eu não sei, mas, pelo menos, não vai ter uma mulher para encher o saco!

– Não vai ter por enquanto, mas vocês, homens, não vivem sem uma mulher. Ficam viúvos, dali a um mês estão casando com outra, enquanto nós, se perdemos os maridos, ficamos quase que talvez a vida toda...!

– É assim mesmo?

– Claro que é. E não duvido nada que você deve ter uma amante
.
– Coitada dela! Há dois meses comigo em casa, sem a gente se ver, sem poder abraçar, beijar, ir ao cinema...

– Aí quando o coronavírus acabar, vocês vão se encontrar, ela vai estar te esperando na porta da casa dela e, no que você descer do carro, ela vem correndo de braços abertos e vai ser aquele encontro! Cheio de abraços e beijos...

– Nossa, está até parecendo cena de novela! Para ficar mais romântico, essa cena tinha que acontecer na praia.
– Com o sol nascendo no horizonte.

– O barulho das ondas arrebentando, aquele bando de gaivotas grasnando no céu!

– A gaivota não grasna, ela guincha.

– Quem falou?

– Eu sei.

– Sabe de onde?

– Ouvi falar, já me contaram, li n’algum lugar, sei lá...

– Você nem sabe, ouve as coisas, acredita e vai falando! E se te disserem que o elefante cacareja? Aí você acredita?

– Vamos olhar no Google para ver quem tem razão?

– Eu não, tenho coisa mais importante para fazer.

– Coisa mais importante para fazer? Essa é ótima! Nesta quarentena em que a gente é obrigado a ficar em casa, o que é que você tem de tão importante para fazer? Me conta, quero fazer também, porque já estou por aqui de ficar tolerando marido chato dentro de casa!

– Mesmo? Então por que a gente não separa?

– Não é má ideia. Por mim, sairia de casa hoje, mas para onde eu vou?

– Vamos esperar o coronavírus passar e procurar o advogado.

– Mais um bom tempo te aturando! Já que você deu a ideia, por que não separamos hoje e você vai para debaixo da marquise? Não foi o que disse agora mesmo?

– Falei por falar. Mas se for o que você quer, já estou de saída. Tchau.

– Espere! Decisões dessas não se tomam assim, de uma hora para outra. Nem acredito que você vai saindo nessa pressa!

3

– Não foi você quem falou para eu ir, há uns dois segundos atrás?

– Falei por falar, pra ver se a gente encerra mais essa discussão de hoje.

– Que você começou.

– Nós dois!

– Tudo bem, nós dois, você tá certa.

– Agora está concordando comigo?

– Eu sempre concordei com você, meu amor. Às vezes a gente perde a cabeça e...

– Amor! Ele me chamou de amor!

– Mas você sempre foi meu amor.

– E você também sempre foi o meu! Nunca que eu quero que você vá embora desta casa. Ficar sem meu xuxuzinho... Meu cobertor de orelha?

– Me abraça, me beije, meu tesão!

– Assim?

– Mais, quero mais!

– Hoje preparei uma noite muito especial. Pedi ao delivery uma garrafa de vinho, vou fazer uns canapés e vamos assistir a um filme ótimo na Netflix!

– Boa ideia! Que tal Coringa?

– Nunca! Com aquela violência toda?

– Tudo bem, sou doido para rever A laranja mecânica.

– Será que você não tem outra ideia melhor? Um filme menos violento?

– Dá sua sugestão.

– Estreou um muito bom chamado Amor é tudo.

– Já vi o trailer. Aquela beijação pra lá e pra cá, nem história tem.

– Melhor do que ver essa violência exacerbada que até me tira o sono à noite.

– Então, uma comédia, algum filme do Mr. Bean.

– Logo aquele chato? Cada filme pior que o outro. Prefiro um com o Jim Carrey.

– Piorou! Você, se fosse crítica de cinema, morria de fome.

– Ai, meu Deus. Vai começar tudo outra vez!

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