Diário da quarentena
Bom-dia
Mauro Alvim
Dramaturgo
– Bom-dia.
– De novo?
– Te cumprimentei antes e você não respondeu.
– Não ouvi.
– Você só ouve o que te interessa, não é?
– Você fala pra dentro.
– Quer que eu grite? Só nós dois nessa casa, nem um movimento de carro na rua, não é possível que você não ouve.
– Sabe o que você tá parecendo? Aquelas apresentadoras de televisão que dão bom-dia para a plateia e depois reclamam: “Nossa, acho que ninguém lanchou hoje! Que bom-dia fraco! Quero ver entusiasmo. Bom-dia!”. Aí a coitada da plateia tem que gritar:
“Bom-diaaaa...!”
– É assim mesmo?
– Não, o pior é depois. Ela vira e fala: “Tá ótimo, mas a gente pode melhorar! Vamos soltar toda a alegria lá de dentro e gritar bem alto: “Bom-dia, minha gente!”. Aí lá vai a plateia ter que esgoelar no bom-dia, para garantir o cachê da apresentadora e ela falar: “Assim! Assim que eu gosto, vamos começar nosso programa com alegria!”
– Então está bem. De hoje em diante, a gente fala oi um para o outro e está de bom tamanho.
– Bom tamanho? Tá é péssimo! Oi só tem duas letras e você me diz que está de bom tamanho?
– Ah, pronto! Lá vamos nós começar outra discussão. Preferia estar presa numa penitenciária do que aqui na minha casa com o meu marido!
– Mas você acha ruim com tudo! Tudo é motivo pra se encrencar! Feito aquele dia em que esbarrei no dedinho do seu pé.
– Esbarrou? Você pisou nele como se mata uma barata!
– E quem manda você ficar andando descalça por aqui com os pés arreganhados tipo dez pras duas?
– A casa também é minha, você me dá licença? Ou vai querer que eu ande de salto?
– Olha... quer saber de uma coisa? Enquanto essa epidemia continuar, acho que vou pra rua ser mendigo! Morar debaixo de marquise, sabe?
– E arriscar a pegar um coronavírus?
– Isso é que não! Você já ouviu falar que mendigo foi contaminado? Que mendigo deu entrada no hospital? Que morreu? Dá uma volta de carro aí pela rua e vai ver todos eles nos mesmos lugares de sempre.
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– Ora! Então você descobriu a cura pro vírus! Tira patente disso e vamos todo mundo pra rua. Vai todo mundo ficar curado, não vai ter fome...
– Se não vai ter fome eu não sei, mas, pelo menos, não vai ter uma mulher para encher o saco!
– Não vai ter por enquanto, mas vocês, homens, não vivem sem uma mulher. Ficam viúvos, dali a um mês estão casando com outra, enquanto nós, se perdemos os maridos, ficamos quase que talvez a vida toda...!
– É assim mesmo?
– Claro que é. E não duvido nada que você deve ter uma amante
.
– Coitada dela! Há dois meses comigo em casa, sem a gente se ver, sem poder abraçar, beijar, ir ao cinema...
– Aí quando o coronavírus acabar, vocês vão se encontrar, ela vai estar te esperando na porta da casa dela e, no que você descer do carro, ela vem correndo de braços abertos e vai ser aquele encontro! Cheio de abraços e beijos...
– Nossa, está até parecendo cena de novela! Para ficar mais romântico, essa cena tinha que acontecer na praia.
– Com o sol nascendo no horizonte.
– O barulho das ondas arrebentando, aquele bando de gaivotas grasnando no céu!
– A gaivota não grasna, ela guincha.
– Quem falou?
– Eu sei.
– Sabe de onde?
– Ouvi falar, já me contaram, li n’algum lugar, sei lá...
– Você nem sabe, ouve as coisas, acredita e vai falando! E se te disserem que o elefante cacareja? Aí você acredita?
– Vamos olhar no Google para ver quem tem razão?
– Eu não, tenho coisa mais importante para fazer.
– Coisa mais importante para fazer? Essa é ótima! Nesta quarentena em que a gente é obrigado a ficar em casa, o que é que você tem de tão importante para fazer? Me conta, quero fazer também, porque já estou por aqui de ficar tolerando marido chato dentro de casa!
– Mesmo? Então por que a gente não separa?
– Não é má ideia. Por mim, sairia de casa hoje, mas para onde eu vou?
– Vamos esperar o coronavírus passar e procurar o advogado.
– Mais um bom tempo te aturando! Já que você deu a ideia, por que não separamos hoje e você vai para debaixo da marquise? Não foi o que disse agora mesmo?
– Falei por falar. Mas se for o que você quer, já estou de saída. Tchau.
– Espere! Decisões dessas não se tomam assim, de uma hora para outra. Nem acredito que você vai saindo nessa pressa!
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– Não foi você quem falou para eu ir, há uns dois segundos atrás?
– Falei por falar, pra ver se a gente encerra mais essa discussão de hoje.
– Que você começou.
– Nós dois!
– Tudo bem, nós dois, você tá certa.
– Agora está concordando comigo?
– Eu sempre concordei com você, meu amor. Às vezes a gente perde a cabeça e...
– Amor! Ele me chamou de amor!
– Mas você sempre foi meu amor.
– E você também sempre foi o meu! Nunca que eu quero que você vá embora desta casa. Ficar sem meu xuxuzinho... Meu cobertor de orelha?
– Me abraça, me beije, meu tesão!
– Assim?
– Mais, quero mais!
– Hoje preparei uma noite muito especial. Pedi ao delivery uma garrafa de vinho, vou fazer uns canapés e vamos assistir a um filme ótimo na Netflix!
– Boa ideia! Que tal Coringa?
– Nunca! Com aquela violência toda?
– Tudo bem, sou doido para rever A laranja mecânica.
– Será que você não tem outra ideia melhor? Um filme menos violento?
– Dá sua sugestão.
– Estreou um muito bom chamado Amor é tudo.
– Já vi o trailer. Aquela beijação pra lá e pra cá, nem história tem.
– Melhor do que ver essa violência exacerbada que até me tira o sono à noite.
– Então, uma comédia, algum filme do Mr. Bean.
– Logo aquele chato? Cada filme pior que o outro. Prefiro um com o Jim Carrey.
– Piorou! Você, se fosse crítica de cinema, morria de fome.
– Ai, meu Deus. Vai começar tudo outra vez!