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Estado de Minas PANDEMIA

Teago Oliveira: 'Construímos um monstro e teremos de enfrentá-lo'

No 'Diário da quarentena', Teago Oliveira, integrante da banda Maglore, faz o balanço dos seus dias de isolamento


postado em 06/06/2020 04:00

O zumbizar dos drones se aproxima enquanto uma moça malvestida com tecidos remendados que cobrem todo o seu rosto carrega uma lata na mão e adentra na escuridão de mais um beco da cidade grande. Essa é uma cena futura e previsível de mais um toque de recolher da próxima pandemia mundial. Nas janelas, as pessoas filmam o ocorrido como se fossem diretores de cinema. Filtros, textões, toda a mise-en-scène contemporânea digital que promove nada mais do que nosso grande vazio egocêntrico. Adoramos situações que nos coloquem em protagonismo. Criticar o sistema, lutar por um mundo mais justo e apoiar causas humanitárias com apenas um clique. Incrível! A humanidade se tornou refém de sua própria ficção. 1984, Black mirror, Years and years. Somos tão previsíveis que nossa ficção cinematográfica conseguiu retratar nosso futuro mais óbvio de forma sublime.

Nós nunca realmente pensamos no futuro e é por isso que ele nos tragou. A culpa é nossa. A culpa de a culpa ser nossa também é nossa. Você entende? A gente não resiste às mudanças que só causam o nosso próprio colapso. Elas são tentadoras. Quando o estrago está feito, recorremos ao nosso falso moralismo e à nossa falta de perdão próprio. Não adianta reclamar das condições de trabalho de um entregador do aplicativo de entrega de comida quando compramos um peso de porta a US$ 0,99 num site chinês, porque o miserável do chinês que criou o peso de porta provavelmente recebe um centavo a cada mil produzidos. Pior: ele deve ser uma criança. A culpa não é da China, a tendência é global. A culpa é nossa!

Perdoe-me se a escrita lhe parece amarga. Do alto dos meus 60 dias de confinamento, ainda existe ternura, ainda que endurecida, mas é extremamente tedioso saber que estamos em 2020 e o mundo está se tornando uma espécie de Mad Max em vez de 2001 – Uma odisseia no espaço. Está muito claro que não vamos numa boa direção. Em que ponto realmente a nossa curva de humanidade começou a cair? Talvez eu tenha uma fagulha.

A revolução digital mudou o mundo, com toda certeza, e, com ele, mudou a nossa forma de enxergar as relações. Se de um lado podemos apoiar as pessoas mais incríveis do planeta lutando por um mundo melhor, mais justo e mais orgânico, compramos veneno de rato em forma de maçã por meio de um aplicativo de celular, enquanto famílias inteiras produzem alimentos extremamente saudáveis e vivem sob a égide macabra da nossa década: “bandidos comunistas”. As facilidades nos consumiram. Nós precisamos dos escravos. Nós também somos os escravos. Nós vivemos sob a corrente filosófica (pelo menos eu, cidadão de esquerda, progressista, ciente de sua hipocrisia) de que a pobreza é o mal do mundo, mas nós estamos repetindo uma grande narrativa que nos é imposta.

Nós compramos, nós consumimos, nós nos sentimos mal e nós criticamos. A gente goza, se arrepende e se frustra. Nós geramos o que tanto combatemos. O mercado precisa dessas pessoas. Ele vende para elas. Mais de um milhão de pessoas vão morrer por causa de um vírus que surgiu provavelmente da condição de miserabilidade de um ser humano. Irônico, não? Bancos, empresas e grupos hegemônicos continuarão nos impondo a mesma (e superficial) lógica contestadora, enquanto nós continuarmos consumindo. Não estou pregando que todos corram para as montanhas e vivam de permacultura (olha, escrevendo assim, aqui, agora, parece mesmo a melhor solução, mas vamos fingir que não), mas alguns parâmetros precisam ser reavaliados e sacrifícios precisam ser feitos.

A revolução é filosófica. Stephen Hawking nos deu mais 30 anos antes do colapso total de recursos. Se lhe pareço pessimista, apresento minha maior esperança: rasgar esse monstro inerte dentro de nós. Deve existir algum modo de fazer toda essa nossa vontade de ver o mundo melhor ser realmente palpável. Algum fio desencapado, capaz de provocar um curto nesse grande autorama no qual estamos presos, pode nos levar a romper esse ciclo e nos dar uma segunda chance.

Algo me diz que precisamos passar por um processo socialmente muito doloroso pra arrancar esse mal que estamos começando a colher. De todas as dúvidas, uma certeza: construímos um monstro e vamos ter que enfrentá-lo, mais cedo ou mais tarde. E no final, depois de ter aprendido a combater todo o mal que causamos, poderemos descansar em paz como Guido, em A vida é bela: fizemos todos os sacrifícios para nossos filhos viverem num mundo melhor. A vida é um filme. A culpa é nossa.

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