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Estado de Minas CONFINAMENTO

Marcelo Alvarenga: 'É preciso aprender a ficar submerso'

No''Diário da quarentena', arquiteto cita poema de Alberto Pucheu e revela como está encarando os dias de isolamento social


postado em 01/05/2020 04:00 / atualizado em 30/04/2020 21:39


Ele não via outra palavra que melhor expressasse o que ele estava vivendo. Há exatos 40 dias, se viu diante da necessidade imediata de se isolar em sua casa, quase num susto, devido a um surto iminente.

Naquele dia, ainda sem maiores esclarecimentos, com notícias e especulações vindas de muitas partes do mundo, a primeira coisa que fez foi se informar do significado da palavra quarentena e se, de fato, ela se referia a 40 dias de alguma coisa, ciclo, retiro, jejum, privação ou espera.

Entre tantas definições e redefinições ao longo da história, viu que o termo já não significava um período específico em que pudesse confiar; só restaria a ele mergulhar num tempo incerto, indefinido.

Não por acaso, logo nos primeiros dias de isolamento, quando todos ainda tentavam desesperadamente manter um ritmo de vida minimamente parecido com o de semanas antes, viu-se em uma aula on-line de Gyrokinesis, aprendendo novos movimentos respiratórios, com longas inspirações e expirações ativando partes internas pouco exploradas do seu corpo e de sua mente.

“É preciso aprender a ficar submerso por algum tempo”, pensou, lembrando-se do poema de Alberto Pucheu. “Mas isso foi lá na primeira semana e tanta coisa já se passou!”

Percebeu que não era bem isso que ele gostaria de escrever naquele diário.

Recomeçou.

“Acordo, confiro as mensagens; levanto, vejo o Instagram; tomo café, leio o Twitter; lavo louças, posto alguma coisa; começo a trabalhar, olho novamente, cozinho, comento em algum stories; almoço, assisto a uma live; tomo café, reposto; recarrego, re, re, re. Que diabos!”, escreveu.

Ele desviou seu olhar do celular e imaginou a quantidade de dados transmitida naquele momento. Pelo ar.

“Mas isso também não é exatamente o que eu gostaria de escrever”, pensou ele, se achando um chato.

Como nunca havia escrito um diário na vida, não seria agora que suas reflexões se desenvolveriam de forma ordenada e fluida.

Ele olhou pra sua casa e percebeu que talvez fosse melhor se deixar levar por algum afazer. Varrer os pelos dos gatos, regar as plantas, lavar os banheiros, fazer um bolo. “Quanta atividade se revela pra quem olha atentamente ao seu redor!”

Lembrou-se por um instante da mãe, que dizia que “o trabalho é de quem vê”, e viu a poeira que se acumulava em cima do chuveiro, a gordura nos potes de tempero, a sujeira esquecida atrás da geladeira, até na lâmpada do banheiro ele também viu uma fina camada de pó!

Recordou de suas avós, suas bisavós, suas tias e, de novo, de sua mãe, exauridas diante de suas casas, exploradas pelos maridos e filhos. “E ainda faziam tudo aquilo com alegria!”

Com um sorriso, foi se lembrando de que nas ações cotidianas coisas belas se revelavam, as tonalidades da casca do alho, o cheiro de uma laranja, a lisura das louças e ágatas, a tinta da beterraba, o poder do coentro.

“Mas que estranha compulsão a atividades é essa, enquanto o mundo está paralisado lá fora? Que vagos pensamentos são esses, enquanto tem gente morrendo diariamente?”, indagou, exausto.

Talvez fosse sobre isso que ele queria escrever.

Respirou.

Pensou que a sua travessia talvez já estivesse terminando, já deveria ter passado da metade do caminho. Mas e se estivesse numa calmaria?

Retomou o seu diário desejando que jamais lhe faltasse o ar.

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