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Estado de Minas

De Paris, onde mora, Márcia Bechara fala dos dias de isolamento social

Atriz, escritora, tradutora e jornalista mineira assina mais uma página do Diário da quarentena, da Coluna Hit


postado em 07/04/2020 04:00 / atualizado em 06/04/2020 17:55


Diário da quarentena  
O vírus somos nós

Márcia Bechara
atriz, escritora, tradutora e jornalista

Não pulo da cama. Não marco hora. Não imagino mais a roupa. O vírus veio temporalizar essa sensação de ausência e de solidão, que nos marca e dignifica enquanto espécie. Essa solidão que nos horroriza e que, portanto, nos define tão bem.

Não ligo o celular, e também não desligo. Apenas o carrego na tomada, por ora, naquela esperança dos insones.

Paris, meu bairro, minha estação de metrô, meu livreiro, meu mercado, meu, meu, meu, que mentira. Tudo o que é meu desaparece. Se fecham as fronteiras de fora, abro as de dentro.

Não tenho muita vontade de falar. Descubro uma espécie de silêncio que não conhecia. Descubro os vizinhos. O rapaz do prédio da frente que passa seus dias confinado na frente do computador, ele tem uma arara de roupas coloridas, petit pois, ele fuma nos intervalos. O senhor que aplaude, todas as noites, os enfermeiros. Os mendigos que cercam o marché Sécretan. 

''Paris, meu bairro, minha estação de metrô, meu livreiro, meu mercado, meu, meu, meu, que mentira''



Os recados entre vizinhos se dão por cartazes coloridos na recepção. Quem pode ajudar escreve no verde. Quem precisa de ajuda, na cartolina alaranjada.

Enquanto isso, os animais ocupam os espaços. Saltam as cercas, reais e imaginárias. Um cervo brincava nas ondas dos Landes, na costa oeste da França. Chorei vendo sua alegria saltando as ondas.

Vi pela internet pavões reais nas ruas de Madri. Cabras pulando pelas ruelas de Chinchilla. Focas nos paralelepípedos do Equador. Javalis (!) no asfalto das ramblas, em Barcelona. Raposas saem dos esconderijos nos parques e jardins de Londres. Um puma atravessa um quarteirão residencial no Chile.

Enquanto redescubro essa minha vocação de astronauta, estou serena. Todo o medo que eu sinto é dirigido aos meus pais, que já estão velhos, no Brasil. Nesse caso, nada mudou. A impossibilidade da distância continua a mesma, que a gente engana pelos aplicativos.

Mas aqui na minha escotilha de astronauta, tudo mudou.

A camada de ozônio está se refazendo. O vírus somos nós.

''Vi pela internet pavões reais nas ruas de Madri. Cabras pulando pelas ruelas de Chinchilla''









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