Este ordenhador de pedras acaba de ser informado sobre a eclosão da Revolta das Bandeiras. Trata-se de um movimento de insurreição liderado por Ken, o marido da Barbie, contra o tremular de todo e qualquer estandarte que interfira no sagrado direito de consumidor que o torcedor de sapatênis tem de assistir ao jogo sem precisar levantar o traseiro do conforto de sua cadeira. Ken pagou o ingresso. Ken está puto.
Ali pelo início dos anos 90, havia uma torcida mais ou menos organizada chamada Dependentes – uma referência, talvez, à Independente, do inimigo São Paulo. Chamava-se, a bem da verdade, Dependentes da Erva. Se bem me lembro (hercúleo exercício), ela se aboletava na periferia da Dragões da FAO, esquina com a Galoucura. Não tinha faixa nem bandeira. Essas coisas dão trabalho, e os Dependentes tinham outras prioridades.
Numa quarta-feira à noite, um de seus membros-fundadores observava bovinamente o movimento da arquibancada enquanto o arranca-toco se desenrolava lá embaixo sem grandes progressos. Quis saber o que passava em seus esfumaçados botões. “Pô, bicho, tô vendo aqui o tanto de mulher que tem no Mineirão na quarta-feira.” E completou, sem se dar conta da perigosa profecia que estava a cunhar: “A gente tinha que vir de blazer”.
Duas décadas depois, tendo os Dependentes desaparecido na fumaça do tempo, a arquibancada foi substituída pelas cadeiras. Surgiram banheiros em mármore de carrara e torneiras de cobre. Foi por essa época que avistei Ken pela primeira vez. Já estava com a Barbie. Eu ainda insistia na minha velha camisa Penalty ano 1986, número 4 às costas, costurado a mão, o amuleto que sempre dava errado. Mas, no meio daquela gente diferenciada, passei a temer que o padre Júlio Lancellotti pudesse me arrastar para algum abrigo na cidade.
Só faltava engomar a camisa listrada e sair por aí. A polarização se dava entre os que desejavam a Adidas e os que sonhavam com a Nike. Aboliram a serpentina de rolos de papel higiênico, pois Ken receava o inédito incêndio provocado pelo perigoso combustível com o qual limpamos a bunda sem dar conta do risco. Os fogos não provocavam mais a espessa fumaça, já que Barbie poderia sufocar. O bolinho de feijão foi pro saco. Privatizaram o tropeiro.
O atleticano de sapatênis havia chegado ao poder. Não tardaria o blazer. O macho empoderado exige seus direitos. O atleticano de sapatênis tem direito de assistir ao jogo, pagou pelo ingresso, vai reclamar no SAC, vai falar com a ouvidoria. O atleticano de sapatênis tem ódio do filho de vidraceiro com sua inoportuna bandeira. Como cidadão brasileiro, ele reivindica seu sagrado direito de permanecer calado.
Em outros tempos, as bandeiras entravam enfileiradas por um único túnel de acesso dos corredores à arquibancada do Mineirão. Uma a uma, como formigas saídas do formigueiro, formava-se a enorme fila de embandeirados que dava a volta no anel superior. Ficavam depositadas sobre o guarda-corpo da arquibancada, em prontidão, até que o time entrasse em campo – e a dança dos bambus fizesse daquele manejo de panos um dos maiores espetáculos da Terra.
Aos trancos e barrancos, as bandeiras resistiram, cada vez mais tímidas e em menor número, assim como as faixas (que precisaram dar lugar à propaganda). Até que, de repente, parece terem sido redescobertas, desdobradas e chamadas à luta. São o símbolo da resistência, o poder que emana do povão, o punho cerrado do Rei.
O Ken ficou puto. Ele acha que o estádio é pra ver futebol, não percebe que ali é a praça de guerra onde finca a bandeira quem canta mais alto. O Ken quer acabar com a Galoucura, quer expulsar a Resistência Alvinegra. O sonho do Ken é Roland Garros.
Esta semana, o presidente Lula esteve na Argentina e se encontrou com as Mães da Praça de Maio, o histórico grupo de mulheres que tiveram seus filhos mortos ou desaparecidos pela ditadura que governou o país entre 1976 e 1983. São velhinhas, tanto ou mais do que o próprio Lula. Mas Lula se sente jovem, assim como as abuelas da Praça de Maio. E ele deu a elas a explicação para o fenômeno: “Não se envelhece quando se tem uma causa”.
Uma causa, vá ao pai dos burros, é uma bandeira. Ken nasceu velho, vai passar. Nós vamos ficar e cantar. E que em breve nunca mais se possa ver um jogo, de tanta bandeira.