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Volta do futebol seria manchete para o jornal 'Notícias do Hospício'

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No momento em que a pandemia do novo coronavírus caminha para estabelecer seu novo epicentro no Brasil, o país discute a volta de jogos de futebol. Seria uma boa manchete para um telejornal que se chamasse Notícias do Hospício, mas há de se respeitar os abilolados, nem todos potencialmente genocidas. “Nós temos um bem muito maior até que a própria vida, que é a nossa liberdade”, mugiu o asno para a sua claque de bovinos. Libertas quae sera tamem! Ao que parece, a  “Liberdade ainda que tardia” abrange a fase post mortem, um alívio em todo caso.


 
Nenhum país da América do Sul discute seriamente a volta do futebol neste momento, a não ser o Brasil. E nenhum tem números tão negativos no combate à COVID-19, sob quaisquer parâme- tros. Mas, ao contar 600 mortes diárias — três Boeings lotados, mais de dois crimes de Brumadinho todo dia —, fora a enorme subnotificação, é nesta cloaca do mundo que se obra a ideia. De resto tão velha quanto aquela de se oferecer circo quando falta pão, ideal, aliás, na medida em que se tem um Bozo para o picadeiro.
 
Que volte então o futebol, afinal quem está na chuva é pra se queimar, e pra morrer basta estar vivo. “Na humanidade não para de morrer. Se você falar ‘vida’, do lado tem ‘morte’”, minimizou a secretária de Cultura, Regina Duarte, a propósito dos mortos pela ditadura e também dos artistas que faleceram recentemente, entre eles o compositor Aldir Blanc, o ator Flávio Migliaccio, seu colega de Globo, e o cantor Moraes Moreira. Nenhum deles mereceu uma nota de pesar de seu “ministério”. Regina Duarte nem sabia quem era Aldir Blanc, autor, entre muitas outras, de O bêbado e a equilibrista.
A namoradinha do Brasil (cruz-credo) substituiu o antigo secretário, o dramaturgo pancadão Roberto Alvim, que achou normal plagiar um discurso de Joseph Goebbels, o ministro da Propaganda no regime nazista que matou 21 milhões de pessoas. “E daí?” Na humanidade não para de morrer gente.


 
Quando houve o crime da Vale em Brumadinho, com 254 mortos e 16 desaparecidos, as pessoas se consternaram a ponto de cobrar o adiamento de um clássico entre Atlético e Cruzeiro. Entre elas, Sette Peles: “Futebol é alegria, é comemoração, é festa. Há clima para a realização de um jogo de futebol diante dessa tragédia ocorrida com nossos conterrâneos? Tenho absoluta convicção de que não. Em respeito às vidas que se perderam e ao sofrimento de seus familiares e amigos, penso que a maior festa do futebol mineiro deveria ser adiada”.

Agora, quando mais de dois Brumadinhos são vitimados pela pandemia diariamente no país, o clube recorreu à Prefeitura de Vespasiano e obteve a liberação da Cidade do Galo para recomeçar os treinamentos, na contramão de qualquer recomendação científica e em desserviço aos que buscam seriamente alertar a população para os riscos de sair de casa. A inspiração veio do Flamengo, aquele que recorre na Justiça para protelar o pagamento de indenizações às famílias dos 10 meninos da categoria de base mortos no incêndio do Ninho do Urubu. É uma boa medida do respeito que esse pessoal tem à vida humana.
 
Daqui a pouco assistiremos nos jornais aos enterros em sacos plásticos e valas comuns, ao sistema de saúde colapsado pela falta de UTIs, às escolhas sobre quem vive e quem morre diante da escassez de respiradores. E no bloco seguinte, os gols da rodada! “Os que lavam as mãos”, disse Lima Duarte, “o fazem numa bacia de sangue”. E haja bacia para tanta mão.